PIEDADE
Mauro Darcy Spinato

- Piedade! Piedade! - gritava o velho louco pelas ruas da pequena vila até parar sempre na casa rosa da esquina.

Em frente à porta pronunciava seu lamento como se um mantra fosse: - piedade... piedade... até Adelaide alcançar-lhe um pão velho, um pedaço de carne ou restos de bolo embatumado. Recebia a esmola com necessidade e seguia rumo ao fim da rua, ao fim da vila, ao começo do nada. O velho Piedade, como era conhecido, simplesmente apareceu. Ninguém lembrava ao certo a primeira vez que cruzou a rua principal da pequena vila. Mas fazia muitos anos, pois a maioria não conseguia lembrar da vila sem a presença do velho Piedade. Quando apareceu já era velho, com cabelos e longa barba brancos. Usava sempre uma roupa branca de algodão cru que parecia ter nascido com ele e sandálias de couro. Sem parentes, sem amigos, nada se sabia de sua vida, nem passado, nem presente. Morava no meio de um pequeno morro abandonado e infestado por unheiros de gato, no meio dos quais supunha-se haver uma casa por causa da fumaça que saía de seus impenetráveis espinhos. Após receber a esmola na casa rosa embrenhava-se no mato de espinhos e desaparecia. Por centenas de vezes foi acompanhado por curiosos que o viam entrar nos espinheiros, mas nunca foi visto saindo dele. Ao nascer do sol entrava na vila pelo lado oposto percorrendo o caminho de sempre e implorando:

- Piedade! Piedade! Piedade!

Jamais parou em outra casa que não fosse a casa rosa da esquina. A moradora, hoje viúva, era outrora casada com um rico e próspero agricultor da região. Tentou inúmeras vezes saber do velho quem era, de onde vinha e porque havia escolhido ela e sua casa para atormentar. Mas as únicas palavras pronunciadas pelo velho louco eram piedade, piedade, piedade. Em certa ocasião, muitos anos atrás, deu ao velho um ultimato: não lhe daria mais nada, nem um grão de arroz se ele não revelasse seu mistério. O velho Piedade permaneceu três dias em pé frente à porta pronunciando seu lamento. Várias pessoas ofertaram comida e água que, educadamente, recusou. Pressionada, ao fim do terceiro dia, Adelaide entregou um pão inteiro e meia galinha assada. Anos mais tarde Adelaide tentou outra maneira de se livrar do velho. A esmola reservada foi sendo reduzida. Além de pouca, muitas vezes entregava comida já deteriorada e até restos de seu cachorro, sua única companhia. Via nos olhos do velho a tristeza e a decepção quando entregava a esmola cada dia mais rala. Haveria de faze-lo desistir. Numa manhã, quase no fim do inverno, o velho Piedade não apareceu. As pessoas da rua saíram aos portões para saber o que teria acontecido. Mas nem um sinal se via do velho Piedade. Ao meio dia alguns curiosos foram até o fim da rua e avistaram-no ao pé do pequeno morro cavando a terra. No cair da tarde Piedade embrenhou-se nos espinheiros e voltou carregando o que todos identificaram como sendo um corpo. Colocou-o cuidadosamente dentro da vala escavada e devolveu a terra. Ergueu do chão uma cruz confeccionada de espinhos e plantou-a na cabeceira do túmulo. As pessoas que observavam correram contar a novidade na vila. Em pouco tempo todos comentavam o assunto. Existia mais alguém na casa do velho Piedade! Seria possível alguém esconder-se durante todos esses anos? Seria uma mulher...? O assunto fervia de porta em porta, de janela em janela. Será que ele retornaria no dia seguinte?

O sol ainda não tinha nascido e as luzes das casas já estavam acesas e as janelas abertas à espera de Piedade. Ao nascerem os primeiros raios de sol ele apareceu, como sempre, no lado oposto da vila. Mas não era o mesmo Piedade que passava por ali todos os dias. Os passos trôpegos deram lugar a um caminhar firme, ereto. O olhar sofrido foi substituído pela firmeza e altivez, suas roupas estavam mais brancas e o rosto parecia iluminado. Percorreu a rua principal em silêncio, pela primeira vez. Chegou à casa rosa e bateu na porta.

- Vim me despedir. - disse com a voz firme, assim que Adelaide abriu a porta.

Adelaide permaneceu muda. Aquele não era o mendigo louco que a atormentara durante anos. Sentiu que aquele era o momento em que todo mistério seria desfeito.

- Vou embora. O Toninho morreu ontem. Meu trabalho aqui na Terra está terminado.

- Quem era o Toninho? - perguntou num impulso.

- O Toninho é teu filho, Adelaide. Aquele filho que tu geraste ainda solteira e jogaste morro abaixo para não perder o noivo rico que havias conseguido. A missão daquele espírito era sofrer aqui na Terra para que tu, dando amor, carinho e cuidados, saldasses o mal que fizeste em vidas passadas. Mas tu o renegaste. Deus me mandou e eu o recolhi. Por trinta e dois anos eu cuidei dele, cego e paralítico, devido a queda que teve ao nascer. Por trinta e dois anos andei por esta rua pedindo piedade para tua alma e bati em tua porta pedindo comida para teu filho. Alimentei-o por trinta e dois anos com a esmola que tu mandavas para ele. Mas tu não compreendeste. Pensavas que eu era apenas um velho louco. Mesmo nos últimos tempos em que mandavas comida estragada, teu filho agradecia pelo que recebia de ti. Eu sei que em nenhum momento, nesses anos todos houve um segundo de arrependimento pelos teus atos. Amanhã não me verão mais. Terás que pedir a Deus sozinha. Não pedirei mais por ti. Mesmo que não queiras saber, Toninho agora está em paz. Está com o Pai.

Nos anos seguintes a pequena vila acostumou-se com a velha louca que perambulava pelas ruas gritando:

- Piedade! Piedade! Piedade! - abraçada a uma cruz de espinhos.

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