FOLHA DE PAPEL
Pedro Brasil Junior
 
 

A folha de papel escorregou da mesa e sorrateiramente planou em direção ao chão. Branca e pura!

Era só um convite à escrita!

Isso ainda foi no tempo em que minha máquina de escrever trabalhava muito. Hoje vive como enfeite sobre uma pequena estante. Mas foi uma grande companheira de textos mil. Já não temos aquela sutileza de colocar a folha de papel, ajustar com rolo, ver o espaçamento e cuidar das margens. Nem quebramos o silêncio da noite com aquele contínuo tec tec tec. E olha que foram incontáveis as noites em que criamos muitas músicas com aquela barulheira toda. O computador tomou conta do cenário. Mas o velho amor está lá, me olhando todos os dias. Não raro, as vezes, minha filha me pede a máquina, coloco papel e ela dedilha as teclas como se tivesse já, em algum dia do passado, escrito ali tanto quanto eu o fiz.

Há muito de mim naquele pedaço de gente miúda, que gosta da máquina de escrever, que adora desenhar, que aprecia fotografias como eu e que tem no olhar e no jeito tudo o que eu tenho de mais valioso em meu interior. Somos pedaços oriundos dessa união que chamamos de amor e que o escrevemos de várias maneiras. O destino coloca seu barquinho no rio da existência e nele, alguém vem à bordo para nos encontrar em um afluente qualquer. Daí, embarcamos e damos início a uma grandiosa aventura. O cenário é lindo, o barco é perfeito, os toques são de pluma, os beijos são de mel, os corpos vivem de arrepios e o frêmito da procura nos interliga numa mágica troca de energias. E depois, os pedaços de nós mesmos chegam e transformam nossas próprias vidas.

Ficamos recordando sim, cada momento belo e nossos pedaços, ao redor da gente, são o testemunho vivo disso tudo que se viveu durante a fantástica aventura do encontro casual. Pessoas diferentes, de lugares diferentes, de costumes diferentes que, repentinamente, unem-se alheios ao passado e incrédulos diante do futuro. Somos o que desejamos ser e viver ali, no presente, pura e simplesmente! Mas se estamos num rio, à bordo de um barquinho chamado destino, é de se supor que as corredeiras ficarão mais fortes em alguns pontos, que obstáculos surgirão com o nome de problemas, que nossas diferenças farão com que nossos remos não sejam iguais ou que passemos a remar fora do ritmo. Mas tudo é uma questão de ajustes, de bom senso durante a jornada. Com paciência e bom discernimento, podemos ir muito longe.
A vida aos poucos vai mudando. Estamos rodeados por informações, tecnologias, costumes novos, valores perdidos, desejos reprimidos, vontades confusas, desejos de encontrar alguma coisa que nem existe....
Ao mesmo tempo, estamos rodeados por um contingente de pessoas que não sabem nada sobre a vida. E um outro tanto que sabe mais do que a gente. Ficamos em nosso ponto decidindo qual o melhor meio ou maneira de seguir adiante e aprender. Já quem nos acompanha, muitas vezes contenta-se apenas em estar ali, sem ter a preocupação de olhar mais à frente, de preparar o caminho de modo que seja mais suave. Também esquece ou perde o real sentido do que a levou em estar justamente ali. Não se compromete em rebuscar sua própria história para descobrir que um dia partiu de algum trapiche para aquela inusitada viagem. Tinha seus objetivos, sua busca. E foi adiante sem ao menos ter feito um planejamento. Mas haveria de ser assim afinal, cada um de nós ocupa seu lugar no mundo e detém em si uma finalidade, uma missão enfim.

As mudanças todas que nos cercam e acontecem fazem parte do aprendizado e se a gente não prestar atenção nisso tudo, acaba-se deixando passar muitas oportunidades de bem viver. Se dermos ouvidos a todas as opiniões ao redor e se seguirmos os preceitos alheios, iremos por certo com destino à cachoeira e daí, nada mais a se fazer. Os sentimentos são o motor que impulsionam nosso barquinho. Os remos nos permitem conduzir pelo melhor caminho. Mas será esse o caminho que outro deseja? Será que é este o seu destino? Teria havido engano em seu embarque? Não! Certamente que não! Qualquer aventureiro sabe que precisa efetuar um minucioso levantamento geográfico e climático do lugar aonde vai para não transformar-se em vítima da própria imprudência e perder sua vida. Tem de estar devidamente preparado para o desconhecido e ter a coragem e a energia necessários para a empreitada. Não poderá jamais se deter nas miragens e ilusões que encontrará pelo caminho. Se tem um objetivo, ele tem de ser a construção de algo firme, concreto, que lhe permita um dia ancorar o barco num porto realmente seguro e poder espairecer a mente na velhice com suas belas lembranças e com conversas agradáveis com seu parceiro.

A folha de papel também um dia se pediu a dobrar. E em alguns movimentos, nascia um pequeno barco de papel. Simples, frágil e bonito. E lá se foi pela correnteza da enxurrada num dia de chuva.

A viagem da vida, em nosso barquinho, nos permite tudo. Amar muito, discutir muito, avaliar, gritar, xingar, debater, espernear, perdoar, refazer, dividir, sorrir, beijar, dar flores depois da briga, levar um café na cama pela manhã, fazer amor ao meio-dia, tomar banho juntos e usar o telefone a qualquer instante, só para dizer "eu te amo". Mas se uma das partes não tem o mapa, não desejaria estar ali, observa o mundo lá longe, vive nas ilusões e nas nuvens, abraça as miragens...então, não seguirá por muito tempo em nosso barco. Pois não é aconselhável a ninguém, beijar o outro com frieza, fazer carinho por interesse, trocar carícias pensando em outro alguém, usufruir da boa vontade e prestatividade do outro por puro comodismo. Melhor que siga em outro barco, nem que se arrebente um dia nas cachoeiras que surgirem pela frente. A vida é liberdade para tudo, e a de escolha em primeiro lugar. Tudo a gente pode. Tudo os outros podem! Só não é permitido que alguém atravesse nossa porta, revire nossas coisas e vá ao âmago para apunhalar o que temos de mais precioso. O preço a pagar será alto! Nesta ou em outra vida.

Temos, cada um de nós, a nossa folha de papel branca e alva. Pura como o mais puro cristal. É preciso que saibamos como tratá-la. O que fizermos pesará em nosso caminho e muitas vezes no destino de outras pessoas. Encontros e desencontros serão sempre uma evidência dos movimentos humanos. Ninguém ama só porque apareceu alguém. O amor é um porto distante... Não podemos e não devemos jamais manchar a folha branca de papel que pertence ao outro. Registremos sim, nossa passagem, nossos momentos deliciosamente marcantes. Mas jamais crivemos nesta folha as marcas dos dissabores e das angústias.

Não somos nada além da essência! Tem gente quem nem sabe o que é isso. Tem gente que nem sabe sentir... E sendo essência, temos que seguir nossa aventura, amando, sorrindo, conversando com estranhos, trocando idéias, aprendendo tudo o que for para o melhor. E isso sem que comprometa o amor que se vive. As pessoas pensam sempre ou na maioria das vezes que o outro ou a outra são propriedade sua. Ninguém é de ninguém! O estar junto é diferente de prender numa gaiola a bela ave só para ouvir o seu canto. Mas a sua liberdade? O seu vôo? A sua missão?

Somos assim, infelizmente. E pesa-se mais o sexo do outro do que a sua beleza interior.

O amor tem asas! Deve ter asas! Tem de ser livre! Mas tem de ser justo, transparente, sincero! A convivência gera conflitos! Cria a rotina! Baixa os níveis químicos da atração e do desejo. Mas se existe amor verdadeiro, tudo se contorna, tudo se resolve com serenidade. A folha branca , pura e alva nasce para ser escrita ou dobrada. É uma referência para que a gente sempre reflita no que escreve e no que pensa em fazer pois o destino, que impulsiona nosso barquinho pelo rio da existência, é impiedoso em suas caudalosas corredeiras.

 
 

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