FORMULÁRIO
Olga de Mello
 
 

Será a última vez, o último encontro, o último momento da nossa única vida. Acabo de declarar que somos ateus num formulário que perguntava a minha cor. Imagina, a minha cor! Pensava que essa história de cor, de raça, tivesse sido abolida, defenestrada com o fim da ditadura. Aliás, acho que foi até na ditadura, que de bom criou a profissão de empregada doméstica. Não, não criou. Regulamentou, finalmente, porque senão as coitadas tinham que dizer que trabalhavam em casa de família, meio que entre os dentes, cheias de vergonha, sem direito a aposentadoria, licença por problemas de saúde, maternidade, essas coisas.
Também nem lembro de outra coisa que a ditadura tenha criado.

Lembro sim. Lembro da Transamazônica. Do Brasil Grande, de cantar "Eu Te Amo, Meu Brasil" e ser repreendida por meu pai, que não dava bronca, não passava pito, não dava esporro. Repreendia.

Então, botei lá no formulário que sou de raça branca. E que somos ateus. E estamos à toa, senão eu não tinha tanto tempo pra pensar na gente. Raça branca... Mais correto era perguntar a qual etnia pertencemos. Deveriam criar um formulário diferente, com novos dados a serem preenchidos. Dignidade. Tem? Sim ou não. Capacidade. Tem? Sim ou Não.
Preconceitos. Tem? Sim ou Não. Sexualidade (Hetero, Homo, Bi, Tri, Pan), perspectivas de vida (alta, média, baixa), sensibilidade (aguda, média, inexistente), índice de felicidade, criatividade, espontaneidade (alta, média, baixa, inexistente), interesse. Aí poderiam classificar a pessoa de acordo com critérios que não se limitassem à mediocridade sócio-econômica.

Chega a hora de assinar o formulário, responsabilizando-me por todas as informações acima. Eu queria me responsabilizar por outras informações. Declarar que estou louca por este próximo encontro, que será o último de nossas vidas mesmo. Declarar que pretendo seriamente me apaixonar por você perdidamente e nunca mais me sentir desesperadamente sozinha, chorando de tristeza por não ter em quem me apoiar nos momentos de desvario, de desesperança. Declarar que você é minha última esperança para suportar os momentos de descoberta, aqueles em que o olho brilha de paixão e não vejo ninguém por perto para compartilhar a euforia, para ser cúmplice da comemoração, pra reclamar da cor de meu batom, da mancha que ele vai deixar no colarinho. Não posso declarar nada, isso é só um formulário.

Este formulário deveria ter embutida uma garantia de que você se comprometerá a segurar minha barra nos próximos dias, meses, não há pretensão de que cheguem a anos. De que você estará sorrindo enquanto eu estiver sofrendo muito, de que você mentirá pra mim que a vida é eterna e que eu ficarei boa, que faremos viagens, que dançaremos ao luar, que viveremos apenas na primavera, nunca mais enfrentaremos o verão sufocante do Rio de Janeiro. Este formulário deveria ter também uma cláusula que obrigasse a vida a me avisar o momento certo em que ela se esvairá. Ninguém nos deu o tempo exato de nossa estadia no planeta. Mas eu queria ter a noção de que estou morrendo, diferente de quem pretende morrer dormindo. Eu não quero sentir medo, quero apenas a sensação, o gozo de saber que é a última sensação animal que terei. Será que haverá uma baita descarga de adrenalina?

Hoje à noite, teremos nosso último encontro de gente sã. Vou me embriagar e lhe mostrar o formulário, o pedido de internação, as receitas médicas, os exames. Mas antes, vou me enganar, brincar, dançar até o amanhecer. Com o sol alto, num dia bem brilhante, eu lhe conto tudo, transfiro a você meus problemas, meus cálculos, minhas dívidas. Resolve a vida pra mim?

 
 

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