NOIVA SEM VÉU
Teresa Maria de Magalhães Araújo
 
 

Luzídio. Assim se chamava o moço, nascido e criado no sertão mineiro, à beira do Rio São Francisco. Nunca desarredou-se dali. Era 1940, época de viver entre aindas e crendinices. Vivia de lapidar a cinzel na pedra sabão - artista nato. Desconhecia as letras, porém sabia ler a maciez dos corpos cravados nas rochas. Luzente no sorriso branco, na pele lisa e jovem. Quieto, generoso com os miseráveis.

A sua oficina ficava ao pé de uma encosta, lugar de difícil acesso. Para se chegar ali só a cavalo ou a pé. Mesmo assim, raramente passava um dia sem que houvesse visitas ilustres. Os pedidos variavam. As donas de casa compravam grelhas, pratos e panelas. A comida fica mais gostosa e quentinha por mais tempo, argumentavam. Os arquitetos encomendavam chafarizes, revestimentos de fornos, batente de janela. Os mais delicados queriam objetos de arte. Prático ou mítico, não se importava. Gostava, sobremaneiramente, de acariciar a brandureza da pedra. Dos pobres, cobrava não.

- Seo Luzídio, quero encomendar uma santa do tamanho de gente graúda, lustrosa, pra cumprir promessa à Senhora de todas as graças, só que não tenho dinheiro não sinhô.

-Se apêie, Belermino, respondeu todo-bondadoso, se é por milagre, custa nada não.

Depois do trabalho, tinha uma única destinação: levar uma rubra flor para Emiliana, a bem-amada. Era uma Dahlia coccínea, cultivada em estufa, rara na região.
O dia era rodeamento do tempo, para estar perto-dela, no valioso fugidio de um minuto. Ia ávido. Depositava a rosa na janela e partia para casa. Costumaz, contumaz. Tão costumeiro hábito que recebeu o epíteto de 'O moço da dália'.

A jovem preparava gracioso enxoval, costurado por dona Almerinda, portuguesa de mãos lindas, conhecedora de muitos feitiços. O arremate e os bordados era a noiva quem os fazia, mineirinha de olhos negros e voz sedosa, dotada de muitas prendas. Vivaz e tal. Sem abandonar a agulha, corria para pegar a flor, em tempo de vê-lo na tardança do passo, esperando o seu sorriso.

Luzídio e Emiliana estavam de casamento tremarcado. Iam viver numa casinha talhada na pedra, feita por ele. Mimo de artesão. A vida, um-só-aguardamento. Do nascedouro até então, morava com o pai e a mãe, já velhinhos, e o irmão - Ostrócio - que era aluado e sabia encantar os lambaris do riacho. Nasceram muito próximos um do outro, diferença de 11 meses. Desde a meninice, Ostrócio era misterioso, tinha olheiras arroxeadas que lhe davam feição de velhinho. A pele muito branca mostrava o mapeamento das veinhas azuis.. O coração batia tão forte que a circunvizinhança escutava o tum-tum. Fugia ao convívio comum, sabia acalmar as crianças que tinham que ser chupadas por sanguessugas, prática antiga de abaixar a febre terçã.

Luzídio via as estranhezas por dentro. Desimportava.. Sabia que o irmão não era desse mundo, respeitava suas esquisitices. Também era silencioso e sua excentricidade preocupava a mãe. Desde a pequeninice, vivia enfiando as mãos na terra, caveava, revolvia-a, separava os seixos com cuidado, amassava-a como se fosse fazer pão. Depois de obter uma consistência pastosa, modelava coisas nunca vistas neste planeta. O que fiz, meu Deus, pra ter duas crianças tão estranhas, dizia a mãe, de si para si.

Cresceram assim. Diferentes.

A uma semana do casório, Luzídio, na sofreguidão de levar a Dália para a noiva, atravessou o rio para recortar caminho, molhando-se inteiro. A água estava enfeitiçada. Como em um ritual religioso, passou na casa da noiva, que esperava ansiosa por-ele-e-a-dália . Ao ouvir a andadura, ela correu à janela. Nem deu tempo de tirar o vestido de noiva que experimentava. Hoje quero falar com ele. Tinham os olhos úmidos,os dois, luzentes como o nome dele. Lanterna que Deus acende dentro dos amantes.

-Emiliana, minha flô.

- Luzídio, meu brilhoso.

Ele se assombrou quando botou tento na belezura da moça.. A tarde se vestiu de noite ao notar que ela trajava o vestido branco. Ó vale dos azares!

- Emiliana...

- O quê, o quê? Ela ainda sorria.

- Não podia vê vossa mercê com a vestimenta do grande dia.

O sorriso dela fugiu como a presa correndo do predador.

- Tenha medo não, nada vai nos separar, fingia confiança .A voz eivada de tremura. Vá, vá antes que anoiteça. Ficarei contando os segundos para vê ocê de novo.

Ele partiu. Chegou a casa pálido, os olhos baços. Ostrócio anteviu a estranhez. Queria despersuadir-se do fatalismo, mas agosto é mês de desgosto, e estavam na metade de um. Sobretudo, acordara com o canal premonitório afiado. Mau agouro.


Naquela noite, Emiliana teve sonhos ruins. Reviravoltava-se entre o lençol e o escuro. Nébulas e trevas .O amanhecer pariu um dia chuvoso. Chorante.

Malvadez do destino?As linhas tortas na escritura borrada. É, é. Uma febre ruim pegou Luzídio de jeito. Sangrava pelos poros e, em poucas horas, perdera a consciência. Foi correria, benzeção, choradeira. Inconformismo. Pedro e Tião da Tonha saíram cedo para trazer o doutor. O Ford 29 encalhou.

Não era pra ser.

Ostrócio, que veio a Terra milagrar, nada pôde fazer. Irmandade e periganças. Dona Almerinda tentou todos as razões e emoções para justificar a desabença das feitiçarias que apregoava.

Luzídio, exangue, foi levado pelos anjos e arcanjos. Leve como devem ser os artistas. A tarde caía, sol e chuva renitente. Emiliana, viúva sem-véu.
Tanto chorou, que o rio transbordou.

Contam os vizinhos que ela nunca mais se casou e que, toda tarde, à mesma hora, minuto e segundo da visita diária, há uma dália afogueada em sua janela.

 
 

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