DOJA IV
ou Os quatro mutantes
Eduardo Prearo
 

I

A chama da vela tremeluz, não há mais energia elétrica por aqui desde que mãe Doja partiu afobadamente. Os homens de preto, hoje mais bem enterrados próximo da horta, arruinaram os fios condutores. Moram comigo três meninos renegados pelo Estado: Bob, Armando e Louis. Bob, que refuta o que faço e o que não faço, diz-se horoscopista e costuma dar-nos interessantes dicas agronômicas. Somos quatro e, coincidentemente, nascemos todos nos dia 11: Bob em 11 de março, Armando em 11 de junho, Louis em 11 de setembro e eu, no dia 11 de dezembro. Por isso, Bob apelidou nossa recém-família de os quatro mutantes. Armando, o mais velho do grupo, ama cristais. Sua última aquisição foi uma esmeralda furtada de um um sério colecionador-camelô da cidade. Armando calcula que há mais ametistas perto da casa, na floresta, do que no mundo todo. Louis lida com contabilidadade e não tem nem seis anos; o que entra e sai da casa, anota no seu caderninho de brochura. A renda de Doja continua a chegar, sem problemas. Vou, de mês em mês, ao banco sacá-la e nem desconfiam que a mãe fugiu há tempos. De qualquer forma, fizemos a boneca Doja, que fica sempre espreitando na janela. Reunimo-nos nas noites de lua cheia para conversar, fazer auto-análise, brincar, etc. Sentar-se ao redor de fogueira é gostoso. Lembro-me de que na última reunião (um evento e tanto), Armando era um dos que mais falavam...

--- Se você cavoucar a terra e achar um quartzo rosa, em estado bruto, é claro, não o mostre a ninguém. O quartzo rosa representa o coração, é a pedra do amor. Que tal irmos até a cachoeira amanhã de manhã?

--- Oba, eu vou --- disse Louis. --- Amo a cachoeira e também as borboletas com asas listradas de coral e cor-de-rosa.

--- Sinto muito, mas não vou --- falou Bob, quase em um sussurro. --- Amanhã é dia da colheita, a lua entra em libra às sete e quarenta e quatro. Couves-flores e amoras me esperam...

--- Mas Bob, ah Bob, nosso bruxinho, astrologia não é ciência --- disse-lhe eu.

--- Vai jogar-me na fogueira, Júnior, vai? --- indagou, irritado, Bob. --- Não é pecado, não.

--- O que é pecado, Bob? --- Louis perguntou, curioso.

--- Ignorância, insanidade, etc --- respondeu Bob.

--- Ah, tá bom --- satisfez-se Louis. --- Agora quero ir pra minha caminha. Mas Armando, venha comigo que tenho medo de escuro e as velas estão bastante caras para serem acesas --- choramingou.

II

Há alguém subindo o morro, e sobe com sofreguidão, deve ser atleta. Louis recusou o desjejum vegetariano e está a brincar na floresta, Bob estuda no sotão o mapa astral de Florbela Espanca, e Armando está por aí à cata de cristais. Observo o "atleta" chegando, é um homem esquisito, um intruso. O sol se oculta atrás de nuvens de chuva, venta. folhas secas correm junto com a poeira e o lixo. O mocetão chega defronte da casa e brada:

--- Ô de casa!

--- Quem é o senhor e o que quer aqui? --- indago, tropeçando em uma pedra.

--- Meu nome é Eduardo, seu criador, às suas ordens.

--- Deus, quis tanto que viesse.

--- Não, por favor, não me chame disso --- diz Eduardo, nervosinho. --- Você tem fogo aí?

--- O senhor fuma? Isso é a pior coisa do mundo. Pare já com isso. Mas entre, vai, entre aqui, Duuudu. Entre pelo menos para tomar um chá de hortelã. Sente-se. Parece triste e cansado. Poxa, não lhe pedi para nascer, mas já que estou nesta história...herdamos todos a sua melancolia, Du.

--- Perdão. Escrevo desde a juventude, época em que talvez nem por um momento eu tenha fascinado as pessoas. Eu...eu...queria te dizer, fofo, que te amo!

--- Traga Doja de volta, Du. Desculpe, mas pelo que percebi, o senhor tem pouca imaginação. O senhor copia essas histórias de algum lugar?

--- Tudo bem, tudo bem, Júnior. Doja voltará um dia, prometo. Mas não sei se posso dar um final feliz a está história, entende? Doja matou, tem que pagar. É complicado. No próximo texto, ela lhe enviará uma carta da Índia. Bom, agora tenho que ir. Cuide-se e felicidades.

--- Tchau, Dudu. Tchauuuuu...

Após um longo abraço e uma choradeira comovente, Eduardo parte sob uma forte chuva, desaparecendo aos poucos na neblina. Foi bom conhecê-lo. Ele se vira no mínimo umas dez vezes, sempre acenando...

 

 
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