OS SONHOS MAIS LINDOS
Olga de Mello
 
 

A melodia grudou na cabeça feito chiclete em sapato. Ainda bem que era bonita, embora odiasse o jeito como Elis começava aqueles "os sonhos mais liiiiiinduuuuuxxxx". Que ninguém a ouvisse, principalmente os amigos que cultuavam a cantora, cujo nome lhes provocava imediatamente reações em seqüência: primeiro, o suspiro, segundo, o sorriso, terceiro o menear da cabeça, quarto, o olhar profundo. Às vezes, alguns espalmavam a mão ao peito também. O êxtase alcançavam quando ouviam discos velhos, remasterizados em CDs.

Tá, tá, a música é boa, Elis também, mas ambas pertencem ao passado e lá deveriam ficar. Preferia cantada pelo Nat King Cole. Era o nome do filme que não lhe vinha à memória, mas estava passando na TV, só que adormeceu no meio da cena em que Gerard Phillippe dançava com a ... ai, era Jeanne Moureau, não? E tocava "Fascination", com orquestra apenas. Os dois dançando, uma roupa linda a da mulher, ele todo bonito de uniforme militar. O diabo é que a música passsou a persegui-la dia e noite, desde aquela madrugada que tentara romper olhando qualquer porcaria na televisão. O filme era bom, mas cochilou bem no meio, não sabia o fim, se o cara ia pra guerra, se era um vigarista, aquelas coisas de filme francês da década de 50. As Grandes Manobras, era esse o nome! Televisão dá um sono terrível, sempre dormia no mesmo trecho de "O Espião que saiu do frio". Nunca gostara de filme de espionagem, mas Agripino adorava, então tentou ver o filme. Três vezes. Acordava na cena final, Richard Burton era fuzilado tentando atravessar o Muro de Berlim. Ai, que coisa mais datada, o Muro caiu, o queixo de todo mundo caiu junto, acabou o comunismo soviético, Guerra Fria, agora a briga é com gente esquisita que se mata em nome de Deus.

A musiquinha martelava sua cabeça no banho, no café-da-manhã, na feira, na praia, na rua. Pegava-se cantarolando, e, quando reconhecia, arfava: "Ai, que eu não me livro dessa música maldita". Era só se distrair que vinham os primeiros compassos. Mas ninguém ouvia, só ela, que tinha de manter tudo em segredo, em silêncio, ou iam pensar que estava maluca mesmo.

Botou a chave na porta e sabia que a música iria começar imediatamente, porque ela chegava quando estava sozinha e as tardes de sábado eram muito tranqüilas, sem crianças, sem visitas. O som, desta vez, veio alto. Era Elis: "Os sonhos mais liiiiiinduuuuxxx....". Estacou, sem compreender. Alucinação? Apoiou-se na porta, agarrando a maçaneta e foi cercada por muito barulho. Um alarido encobriu a música, gritos de "Surpresa!", "Parabéns, Vovó". Sentiu que ia cair, mas o filho a abraçava. Sentiu que ia estragar a alegria de muita gente, esboçou um sorriso quando alguém disse "Vovó adora essa música, vive cantando".
Torceu para que ninguém pensasse em associá-la àquela música infeliz.

Não adiantou. No fim da missa de sétimo dia,Frei Henrique conclamou os presentes a se juntarem numa última homenagem à Dona Joana Brígida. "A letra está no santinho que os filhos, sabendo do apreço da mãe por esta bela canção, mandaram imprimir. Vamos cantar para Dona Joana Brígida". E, alguns aos prantos, começaram: "Os sonhos mais liiinduxxxx...".

 
 
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