O ESTILISTA
Ronaldo Torres
 

Que era vendedor, ninguém tinha dúvidas. Caixeiro-viajante, para ser mais exato. Boa pinta, boa aparência, bom papo. Na pasta 007 que portava devia conter amostras grátis de algum remédio. Estava mais para vendedor de Cibalena e Sonrisal do que Alka-seltzer e Melhoral. Porém, na pequena cidade de Lagoa Azul, ninguém entendia assim. Devia ser gente importante, acostumada a freqüentar os corredores de Brasília. Algum deputado afamado, desses que não precisam marcar audiência com os ministros, pensaram os lagoazulenses, poucos acostumados com visitantes de tamanha estirpe. Pela indumentária, não era para se pensar menos: terno de tergal azul-marinho, sapato preto bico fino, envernizado, lustroso, cujo brilho não diminuiu com a poeira da estrada. Calça daquela que não desbota e nem perde o vinco. Típica de vendedor que se preza. Típica de quem quer impressionar. E impressionou.

Lagoa Azul é o último lugar do sertão onde o vento marca presença. Isso quando não resolve fazer a curva antes. Onda de rádio, sinal de tevê e boas notícias são coisas do outro mundo. Eletricidade, somente a dos pentes nos cabelos e a dos raios na trovoada. Galinha cisca pra frente e candeeiro dá choque. O filme "Assim Caminha a Humanidade" foi exibido com o nome de "Vixe Maria, Pra Onde Vai Tanta Gente!?"

Lampião, quando vagava pelo Sertão, mandou recado que ia lá. Os lagoazulenses não se assustaram, pois confiavam na bravura do guarda Quarenta, intrépido e destemido Agente da Lei, também nomeado subdelegado. Ganhou esse nome por viver se gabando de ter matado quarenta soldados de Moreira César na Guerra de Canudos. O próprio Conselheiro o havia condecorado com a "Grã Cruz da Ordem do Cumbe", dias antes de morrer de morte natural. Agora, era chegada a hora de fazer jus ao nome. A vida do povo estava em suas mãos.

Lampião, no dia aprazado, interceptou um passante nos arredores da cidade e indagou se havia muitos "macacos" à sua espera.

- Vixe, seu capitão! Só tem Quarenta! - respondeu o transeunte, sem entrar em detalhes. O rei do cangaço contou seus cabras: vinte e dois. Com ele, vinte e três. Estava em desvantagem numérica, sem falar que os macacos deviam estar entrincheirados. Fez meia volta decidido a deixar a cidade em paz.

Mas isso aconteceu muitos anos passados e poucos conhecem a história do guarda Quarenta, cuja estátua, abandonada na Praça do Tamarindeiro, serve como ponto de descanso dos urubus. Nem placa existe mais.

A diversão maior da cidade é esperar o ônibus às sete horas da noite, trazendo gente e notícias de outras plagas. Gente civilizada. É uma festança. O prefeito e o delegado marcam ponto. O prefeito, por razões óbvias, para fazer política; o delegado, presidente do partido oposicionista, para lançar farpas contra o prefeito.

Claudionor das Neves subornou o motorista do ônibus para fazer a parada final em frente ao seu bar, que também é restaurante, armazém de secos e molhados e a única pensão em um raio de trinta léguas. E, enquanto o ônibus não chega, o povo disputa, aos tapas, as bebidas oferecidas pelo prefeito e pelo delegado, cada um em seu canto, ofertando vantagem para aumentar a platéia.

E foi nesse clima que o nosso herói desembarcou. Era um sábado festivo de missão, de leilão, quermesse, corrida de saco, quebra-pote, pau-de-sebo e o clímax da festa aconteceria no dia seguinte, com a missa solene.

A massa, espremida na porta do ônibus, dificultava o desembarque dos passageiros. O vendedor, fascinado com aquela multidão, desceu fazendo pose, pisando lento e macio, pasta na mão esquerda, maleta na mão direita. Olhares curiosos acompanhavam todos os seus movimentos. Alargou o sorriso. Não notou que uma rajada de vento levantou a sua gravata e que a mesma repousou sobre o seu ombro.

No outro dia, na missa solene, a igreja estava lotada, insuportavelmente cheia, abafando a preocupação do padre com a falta de espaço para movimentar as cestinhas na hora das oferendas. Um verdadeiro espreme-gato. As mulheres vestiam seus melhores trajes de festa e exibiam penteados exóticos, enquanto que os homens, vestidos a caráter conforme exigia a ocasião, de terno e gravata, disfarçavam um pequeno detalhe que não passou despercebido ao olhar atento do vigário: a gravata estava presa no ombro por um pequeno alfinete.

 
 
fale com o autor