PARLA, AMORE
Tatiana Alves
 

Acabara. Fechando os olhos e sorrindo em sinal de aprovação, admirou a peça que tantos meses de trabalho consumira. Aquela estátua, sem dúvida a sua obra-prima, parecia quase real. Entendeu, por um momento, a fúria desesperada do escultor que, indignado ante a perfeição de sua obra, a mutilara. Perfeita porém muda. Ideal para alguns homens, mas não para o coração de um artista. Já a sua escultura, apesar de dotada de indiscutível beleza, possuía um quê de imperfeita, como que a contrariar a ditadura estética. Seu olhar - se é que uma estátua tem propriamente um olhar - parecia levemente desafiador, como se o instigasse a conhecê-la melhor.

Aquela escultura era, de fato, diferente. Pela primeira vez, ele não se tinha valido de modelos vivos, ou mesmo de fotos. Como se fosse o original e não a réplica, aquela estátua era única, ímpar. Excitado com o pensamento, tocou-lhe de leve a face, como que desejando que ela docemente lhe devolvesse o olhar. Seu corpo lembrava o de alguma deusa grega, mas os traços do rosto sugeriam uma mulher moderna.

Surpreendeu-se com a sensação de vazio trazida pelo término da obra. Como seriam suas noites a partir de agora, sem a perspectiva de tocar novamente aquele corpo? Seu perfeccionismo levara-o a dedicar àquela obra muito mais tempo do que o habitual, e a idéia de retornar aos seus vasos e colunas, feitos para ganhar o sustento, parecia-lhe medíocre. Não, pensava ele, não posso acabar com ela. Ao mesmo tempo, era uma quase profanação tentar modificar aquela obra. Deixando o atelier, serviu-se de um cálice de vinho, seu companheiro inseparável durante o processo de criação da Deusa. Sabia que jamais a venderia. À semelhança das Deusas, ela o havia de algum modo enfeitiçado, condenando-o a adorá-la. Olhara em seus olhos, tragando-lhe os pensamentos mais recônditos e inconfessáveis, tornando-se sua cúmplice eterna.

Obcecado, correu para o atelier apenas para vê-la, como um namorado que telefona a cada meia hora para ouvir a voz da amada. Como que para se certificar de que Diana - Deus, ele até já lhe dera um nome - ainda estaria lá, subiu os degraus dois a dois.

Mas ela desaparecera. Quem poderia ter entrado ali sem que ele visse? Como faria para recuperar a obra de sua vida? Será que jamais a reencontraria? Desvairado, vagou pelas tranqüilas ruas do bairro, como se pudesse se deparar com ela em alguma esquina. Buscá-la-ia nos infernos, enfrentaria monstros, decifraria enigmas, se preciso fosse, para tê-la novamente nos braços.

Após dois dias deambulando como um peregrino errante, veio a prostração. Desespero e exaustão alternavam-se, deixando-o em um estado de torpor que só foi rompido pelo som de uma leve batida à porta. Em um lampejo de esperança, levantou-se do chão e alinhou os cabelos. Tolice, pensou, ninguém devolveria aquela perfeição. Seu ceticismo deu lugar ao deslumbramento quando viu a jovem que se preparava para partir. Inexplicavelmente, seu rosto era idêntico ao de Diana, inclusive com o olhar desafiador e o riso levemente jocoso. Reparando bem, o rosto formava uma covinha apenas de um lado quando a moça sorria. Atordoado, mostrou-lhe algumas peças decorativas, motivo de sua vinda. Ah, claro, o anúncio no jornal do bairro, pensava ele, enquanto ajeitava a camisa e procurava em Débora - era esse o seu nome - diferenças entre ela e Diana. O chapéu e o vestido florido davam-lhe um ar primaveril, e o passo ao mesmo tempo firme e gracioso eram exatamente como os de uma Deusa que passeasse pelo mundo.

Após a escolha de algumas peças, tarefa em que ela se demorara mais do que o necessário, intercalando perguntas pessoais com outras referentes às obras, convidou-o a acompanhá-la em um passeio. Encantado, deu-lhe o braço e sorriu. De alguma forma, sabia que ela lhe pertencia, e ele a ela. Pensando bem, não fazia mais diferença que, em seus braços, fosse ele a criatura.
 
 
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