BIRRA PARADISO
Luís Valise
 
 

O dinheiro andava curto, a escola das crianças era prioridade, Geraldo trancou as gavetas da mesa, desligou o micro, e levantou disposto a ir direto para casa. Na saída do prédio a roda de amigos (as mulheres os detestam com razão) esperava por ele.

- Gê, hoje é aniversário do Lopes, ele vai pagar o chope. Vamos nessa?

- Não dá, preciso chegar cedo, semana passada fomos todos os dias. Tô sujo em casa.

- Quê é isso, deixa pra lá, a gente sai cedo, só algumas rodadas. Vamos?

- Não sei...

- Vamos.

O nome do lugar era Birra Paradiso, mas eles chamavam Pé Redondo, porque saíam andando em círculos, bêbados e felizes. Geraldo prometeu a si mesmo que só tomaria três copos, queria evitar mais um esporro da Cristina. O dono do bar era um italiano:

- Mios amores! Guardei uma mesa especiale pra vocês.

Tudo mentira, o Mário não guardava nada, mas vivia jogando charme. O bar era bem freqüentado, o chope bem tirado, e os petiscos, de primeira. Veio a primeira rodada, cantou-se Parabéns pra Você, e Geraldo a viu pela primeira vez. Numa mesa que também festejava qualquer coisa, ela ria e passava os dedos nos cabelos escuros cortados rente. O que mais chamou sua atenção foram os olhos, castanhos e ariscos como os de um esquilo. Tinha as mãos pequenas, as unhas curtas e um anel prateado no dedo médio. Geraldo foi ao banheiro só pra passar perto dela, viu a cintura fina e as ancas redondas. Claro que os chopes passaram dos três, e ele chegou tarde, e levou outro esporro. A Cristina era uma santa.

Dias depois ele foi sozinho ao Pé Redondo. Mário abriu os braços:

- Mio querido! Vem, tenho uma mesa especiale.

Mas Geraldo queria outra coisa:

- Mário, outro dia viemos comemorar o aniversário do Lopes, lembra? Naquela mesa ali tava sentada uma garota baixinha, de cabelos curtinhos, vestido preto, olhos assustados...

- Sei quem é. E daí?

- Daí eu queria o telefone dela. Você tem?

- Gê, você é casado, deixa isso pra lá.

- Não dá, Mário, não consigo esquece-la. Quebra esse galho, vai...

Mário foi para o lado de dentro do balcão, abriu uma gaveta, remexeu, remexeu, até achar o cartão. Geraldo leu: “Adriana Menezes – artista plástica”

- Artista plástica?

- É. Pintora e escultora.

- Vou anotar o email e esquecer quem me deu. Certo, amigone?

- Vê lá, Gê, isso pode me complicare...

- Vai, não. Tira um chope no capricho pra mim.

Como sempre fazia ao acordar, Adriana ligou o micro e foi preparar o café. Quando voltou viu o sinal de email na caixa. Abriu: “Adriana, sou homem de poucas palavras, por isso preste atenção: te amo.”

Seu olho clínico logo classificou o tipo: - minimalista, original, discreto e amoroso. Resolveu perguntar quem era ele, e esse foi o começo de tudo. Adriana estava sem namorado há algum tempo, e, embora evitasse homens casados, nem tudo se pode evitar nesta vida. Um amor escondido, intenso, de breves momentos cheios de paixão, que obrigou Geraldo a uma série de malabarismos e artimanhas, que entretanto não satisfaziam Adriana, que cobrava mais e mais sua presença. O único com quem ele podia desabafar era o Mário:

- Tira um chope no capricho.

- E aí, como vai a Adriana?

- Tá foda. Ela quer que eu jogue a Cristina pro alto. Tá bom, eu jogo, mas e as crianças?

- E a Cristina? Desconfia de alguma coisa?

- Não. Coitada, a Cris é uma santa. Não merece isso.

- Então joga a Adriana pro alto!

- Nunca! É a parte boa da minha vida, o resto é ensaio.

- Então, tá difícile.

E estava mesmo. Quando Adriana deu a decisão “ela ou eu”, Geraldo sentiu palpitação, começou a suar frio, Adriana se assustou:

- Um mês. Eu espero mais um mês.

O coração de Geraldo voltou ao normal, ele agarrou Adriana no tapete da sala dela, Adriana ardorosa, pressentindo que aquela era das últimas vezes, Geraldo no fim, exausto, decidindo:

- Você. Vou ficar com você. Me dê um tempo pra terminar com ela.

Durante três semanas Geraldo não viu nem falou com Adriana. Chegava do trabalho com ar amargurado, jantava, ficava defronte a televisão, mal falava com as crianças. Cristina mostrou preocupação:

- O quê foi, meu amor? Fala pra mim, você está tão distante, esquisito...

- Não é nada, Cris, deve ser estress, deve ser o chefe, deve ser tudo!

Disse isso e entrou no banheiro, batendo a porta com força. Já tinha começado a escrever uma carta para Cristina, não tinha coragem de dizer que amava outra. Pegou a carteira, desdobrou o papel onde começara a escrever “Cristina, minha querida, sei que você não me perdoará, por isso só peço que você cuide bem dos nossos filhos. Um dia talvez você compreenda. São coisas da vida. Um beijo, e adeus. Geraldo” releu o papel pela enésima vez. Guardou-o novamente na carteira, deu a descarga, saiu, foi para o quarto, tirou a roupa, vestiu o pijama e deitou. Quando Cristina entrou, Geraldo fingiu que dormia.

Ao acordar na manhã seguinte, viu que Cristina já tinha ido levar as crianças para a escola. Sobre a mesa da cozinha, o café pronto: pão, presunto, e um copo de suco de laranja. Geraldo nunca tinha apetite pela manhã, por isso tomou o suco e foi tomar banho.

Quando a polícia chegou, encontrou Cristina aos prantos, descontrolada, dizendo palavras sem nexo. O corpo de Geraldo, nu, estava caído no piso do banheiro. Na queda batera a cabeça, um filete de sangue saía da testa. Sobre a mesa da cozinha, um copo vazio, um vidro de pílulas para dormir, também vazio, e um bilhete de despedida com a letra de Geraldo. A autópsia confirmou morte por ingestão de soníferos em dose elevada. Suicídio.

Cristina voltou para o interior com as crianças. A casa dos seus pais era grande, os meninos podiam brincar na rua, um antigo namoradinho de infância continuava solteiro, e todos achavam que ela era uma santa.

- Mário, tira um chope no capricho.

Mário olha, e fica imobilizado. Adriana está na sua frente, sorrindo melancolia. Vai sentar-se numa mesa. Ele leva o chope, ressabiado. Ela o sossega:

- Pode ficar tranqüilo, Mário, ele me contou tudo. Você só quis ajudar.

- E você, como vai?

- Levando a vida. Tudo passa, não é mesmo?

Mário reparou que ela tinha mesmo olhos de animalzinho assustado. E cintura fina. E ancas arredondadas. Ele só queria ajuda-la a esquecer:

- Posso tomare um chope com você?

 
 
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