MEMÓRIAS SALPICADAS DE ESQUECIMENTO
Thaïs Martins
 
 
Pela "manhã, entardecia," perdendo coisas e "à tarde, anoitecia", procurando o que tinha perdido. Assim foi com os óculos, que achou encarapitados no seu nariz, com os remédios encontrados no fundo da geladeira e até com a pirracenta da filha que parecia ter sumido, mas estava grudada no seu pescoço, sem falar da carteira, das chaves e das bolsas que passeavam por muitos esconderijos.

Tudo começou quando ficou alucinada com o ruído dos cupins que devastavam o casarão florido de buganvílias, rosas caipiras, jasmins manga, cercado de escadarias de mármore, por onde certa vez ela desceu de Greta Garbo para encontrar seu Clark Gable. Agora era banquete para os insetos, que encheram seu castelo de ninhos e instalaram outra rainha dentro de seu quarto cor de rosa, bem debaixo das guirlandas de madressilvas, cristalizadas no seu primeiro gesto de pintora. Aqueles bichos se multiplicaram aos milhares, ela sentia como se eles roessem vorazes as suas raízes, os cenários de sua infância, as sementes de seu imaginário de artista e outros fragmentos de suas memórias.

"- Impossível restaura-lo, impensável vê-lo transformado em pardieiro, numa pensão vagabunda ou em casa de putas e, depois, deixa-lo ficar lá, envergonhando a rua. Devia ser proibido. -" Ela repetia, contraindo o nariz, a boca, segurando as mãos entre os joelhos, afundando o peito num ai, cerrando os olhos e desviando a cabeça.

Enfrentou as cobranças da família e mandou implodir o casarão para sobreviver à decadência, para não se culpar por não poder salvá-lo, para apagar a presença daquela riqueza que o tempo consumiu.

E como o esquecimento é tão cheio de estórias, suas lembranças foram salpicadas pelos brancos das paredes que ruíram.
 
 
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