VAGAR
José Luís Nóbrega
 
 

Como a manhã estava bela! Nunca havia reparado no alegre cantar dos pássaros. Nunca havia sentido a pura brisa do alvorecer. De braços abertos, cabeça pendendo para trás, rodopiou, rodopiou, rodopiou... Como era prazeroso presenciar tudo aquilo!

A filha acordou triste. Estaria ela sentindo a falta de alguém que partira, ou seria mais uma briguinha com o namorado imaturo? Coitadinha! - pensou ele. Talvez só ela estivesse sofrendo. Calada, não quis comer a bolacha que tanto gostava. O irmão mais velho parecia não ligar para a cena. Pegou um pedaço de pão e saiu, cantarolando o mesmo Rock de sempre...

A empregada espanou o empoeirado quadro. Derrubou-o por duas vezes. Parecia que ela também não sentia a menor falta de um dos personagens daquele envelhecido retrato. Passou o espanador por sobre aquelas figuras sem a menor comoção, sem demonstrar um pingo de saudade...

Achou melhor sair dali. No escritório, com certeza, algum colega ainda estaria consternado, olhando o velho quadro na parede e lembrando de alguém, um alguém outrora tachado por companheiro, corajoso, humano... Ledo engano! Todos conversavam em voz alta. Todos riam. Não havia tristeza naquele ambiente. O quadro há muito não era limpo, nem derrubado por uma faxineira descuidada e de coração pétreo. Não, aquilo não poderia ser verdade! Onde estavam os amigo? Aqueles que um dia riram com ele, concordaram com ele, se divertiram com ele, e que agora, deveriam estar tristes, sentindo a falta de alguém...

Visitou casas de parentes... Ninguém ao menos tocava em seu nome. Visitou a casa do irmão mais velho. Passará ele a infância se espelhando naquele sábio irmão, que o ensinará a amar a família acima de tudo. Mas agora, aquele mesmo sábio irmão se entretinha com um joguinho de futebol pela TV. Concentrado, não perdia um lance. Copo de cerveja na mão, torcendo por onze jogadores, esquecendo-se por completo de um, um único irmão, agora olvidado por entre fotos jogadas numa gaveta mofada pelos anos de cerramento.

No bar da esquina, onde todos o respeitavam, admiravam sua eloqüência, sua filosofia etílica, sua alegria no viver apenas o fim de cada dia, nem ali, onde lá num quantinho uma foto antiga registrava um daqueles alegres momentos, não, nem ali houve um único brinde a alguém ausente, e que tanto apreço sentia por seus boêmios amigos.

Sua mulher saindo do serviço. Tarde da noite. Como trabalhava, como não fora valorizada por ele, pensou ao dar mais uma rodopiada, ainda de cabeça pendida para trás, braços soltos no ar... Um carro a aguardava. Um elegante senhor de cabelos grisalhos, belo terno... Ela entra, beija aquele homem nos lábios, depois acaricia seu rosto com a ponta dos dedos delgados, mas ao mesmo tempo macios. Ele quis chorar, mas já não havia como - era tarde demais! Ela, além de não sentir saudades, já o trocara por outro. Rodopiou, rodopiou... Quis tocá-la, mas faltava-lhe matéria. Quis correr, mas já não tinha pernas. Quis morrer, mas já não mais podia...

Continuou a rodopiar, rodopiar... Estava presente apenas em empoeiradas fotos, perdidas em paredes descascadas pelo tempo e gavetas mofadas. Havia morrido fazia apenas duas semanas. Ninguém mais se lembrava dele. Ninguém mais chorava sua morte. Ninguém mais o procurava, nem mesmo em sentimentos. Rodopiou, Rodopiou... Cabeça pendida para trás. Era chegada a hora de voltar para aquele lugar meio quente, meio frio, perdido entre o Céu... e as profundezas da Terra...

 
 
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