O BEIJO
Carlos Mestre
 
 

Depois do beijo minhas pernas tremiam, meus dedos vibravam como se fossem as cordas tangidas do piano. Ali, em algum lugar na parte posterior do meu crânio, uma onda gelada arrepiava-me os poucos cabelos que teimavam em subsistir na cabeça quase deserta. Somando-se a calvície à baixa estatura e à miserável aposentadoria, minhas contas estavam negativas. A não ser, talvez, que se incluísse o velho piano que - para que se beneficie a verdade - fora menos surrado pelo tempo do que eu. Achei que tinha ficado cego, mas era apenas um tufão que revolvia o nervo ótico, enquanto o cérebro depurava o acontecido.

O fato é que aquele beijo fora uma espécie de Gepetto, e eu, um Pinóquio de 75 anos, desmontado no banco da praça pública.

Ela era muito jovem e bela - razões mais que suficientes para o meu espanto, para a minha incredulidade. Beijou-me a boca sem qualquer recato, sem rodeios e sem palavras. Meus lábios rachados por décadas de sol pareciam agora um terreno fértil e úmido. Minha saliva, amarga e solitária havia anos, misturou-se à dela, adocicada e pungente. E então degluti aquele saboroso vinho, enquanto a mulher sumia dos meus domínios, como visão passageira.

Aquele beijo me devolveu a deleitosa insegurança que arrebata os corações infantes. E súbito me vi menino, de mãos dadas com meu pai, num caminho incerto, à espera de um comando gentil mas firme.

Fora um sonho? Os tiros ao longe me acordaram? Isso não importava. Olhei para o cão sem tímpanos que dormia ao meu lado, acomodei-me no banco, cobri-me com os jornais úmidos de orvalho e voltei a dormir.
 
 
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