AFLUÊNCIA
Luísa Ataíde
 
 

O mar, asseguram os poetas, guarda os segredos dos rios, estes, em obediência cega, entregam-se à sua imensidão.

Foi quando percebeu que só tinha nas mãos cacos, que eram tão pequenos que não podia emendá-los. Foi quando percebeu que a luz que abre os dias é a pura claridade dos dias e o que mata sede é água. Foi como acordar lúcido e sujo numa calçada. Diante de uma saída tão estreita, acabou concordando que a realidade tinha sua fatia sem matéria. Ela não: Tinha um rosto, cabelos, fome e sede. Fome e sede... O pior era que o tempo passava.

Resolveu não mais sair de casa e a viver num estado de desistência. Na calma de nada entender trancava gavetas, portas e janelas. O que não convivia bem consigo, era não se achar de confiança e quase sempre não caber em si. Sua felicidade consistia em ter um sentimento secreto de inexatidão. O dia que tudo lhe parecesse matemático, teria a impressão cômoda dos dias. Constatou, então, que colocavam um fim fora de lugar. Na verdade amava ter sido dois. Julgou que se fosse a outra parte seria mais fácil, contudo, não sendo o lado feminino da estória, jamais alcançaria esse estado de inquietação, de querer saber o que um homem sente. Eram territórios sem fronteiras.

Estava de través, como se qualquer outra posição lhe desequilibrasse. Sabia que não poderia permanecer por muito tempo assim, esse estado de alvoroço a anestesiava e tirava-lhe o sono. Da desistência se chega à loucura, destes tudo é perdoável. Por muito tempo, sua única ligação com o mundo era o rapaz da mercearia, que às Quintas-feiras, trazia as verduras.

-Dona Clara! Gritava do portão.

Também aconteceu: "O tempo pôs-se a correr, a correr, a correr, e o mato cresceu ao redor, ao redor..."

Ela era por liberalidade sua própria feiticeira.

Aí, vem o dia que a maior das artes humanas vence; a Sobrevivência, estado latente de defesa. Até ali, não ter certezas era o fruto que carregava em silêncio. Com habilidade mestra, colocou-o sobre a mesa e o partiu como se procurasse a menor das células. Embuída que estava do mesmo sentimento que Deus teve no dia que resolveu fazer o mundo, abriu as janelas da sala.

A umidade da casa atravessou a varanda.