DISTÂNCIA SOCIAL
Doca Ramos Mello
 
 

Entraram aqui na garagem de casa, na calada da noite, estouraram o vidro do carro do meu marido e levaram o som. Esse tipo de 'atividade', a própria polícia confessa, é coisa de 'nóia', gente viciada que, fissurada pela sua ração de pó de cada dia, sua trouxinha de erva, sua pitada de crack, faz esse tipo de servicinho com presteza impressionante. A polícia também vai logo falando que de nada adianta fazer queixa, 'é assim mesmo'. E pronto.

Mas existe o seguro. E para que o seguro pagasse ao menos o vidro do carro, afinal eu jamais teria a pretensão de ter o som de volta, quem sou eu, fui à delegacia fazer o boletim de ocorrência. Fiquei plantada lá por quase uma hora e meia, enquanto o sujeito que deveria me atender falava com os colegas de trabalho, ria e dizia não saber operar o computador. Quando finalmente conseguiu desvendar os mistérios do programa com o qual deve trabalhar todos os dias, deu-se à gentileza de lavrar o boletim. Então, me fez as perguntas de praxe até chegar à marca do carro. À minha resposta, dignou-se a levantar os olhos acusadores e sentenciou: "É a distância social".

Pensei em argumentar que distância social era a PQP, mas sou uma senhora e, além disso, pago regularmente os impostos, não roubo nem passo a perna em ninguém, não tenho o habeas-corpus de Duda Mendonça, portanto sou altamente suspeita, como qualquer caseiro de Brasília, uma inimiga potencial da polícia, da sociedade e, se duvidar, até dos dirigentes deste país, uma ameaça ao Brasil. Corria, pois, o risco de ser enquadrada na hora e, ato contínuo, encarcerada em um presídio de segurança máxima, quem sabe até para ocupar a vaga daquele anjinho loiro que, inocentemente, mandou matar papai e mamãe a pauladas, que ternura...

A distância social está aumentando muito neste país, é isso.

Deve ser também em função dessa mesma distância que certa jovem, tendo sido abandonada (vai ver profilaticamente, tem gente que vaticina tragédias) pelos pais de sangue, teve a má sorte de ser adotada por outros, insensíveis e incapazes de compreender, já na adolescência da mocinha, sua necessidade da citada ração de pó, a ponto de não mais aceitar ser roubados por ela dentro de casa e, sendo assim, a jovem, coitada, não teve outra alternativa e se mandou - o mundo é injusto. Para sobreviver, escolheu a mais antiga das profissões que, hoje, em fase politicamente correta, a sociedade se apressa em elogiar e compreender - é um modo de atenuar a distância social...

Rolando aqui e ali, a moça viu-se um dia sob os mesmos lençóis de um jovem casado e pai de família, naturalmente um sujeito que levava uma vidinha muito da chata com a mulher e os filhos, sem grandes emoções arrebatadoras nem sexo grupal e intenso, de modo que desfez essa coisa descartável chamada família e tornou-se namorado (todo mundo namora hoje em dia) e empresário da moça. Recentemente, ela escreveu um livro em que dá nome aos bois, descreve com riqueza de detalhes as mais variadas posições e orgias bovinas, texto disputado (com perdão pelo emprego do termo derivado de 'disputa') a tapas pelos editores, sucesso editorial com direito a sessão de autógrafos e, quem sabe um dia, até assento na ABL...

Hoje, dá entrevistas na televisão e vende palestras. Se bobear, deve concorrer a uma vaga no Senado ou na Câmara Federal, onde poderá trabalhar muito mais intensamente para diminuir a distância social. De repente, faz uma dobradinha com Jeany Mary, por que não? A escritora e a promotora de eventos (esta, dizem caseiros e motoristas inimigos do progresso nacional e adeptos do 'denuncismo', favorita até mesmo entre ministros), que dupla!

E quanto à mulher abandonada, a chata mãe dos filhos do sujeito? Bem que ela tentou embarcar na onda e faturar algum, mas não virou - seu apelo não rende, não há distanciamento social nesses papéis sem graça de mãe e esposa. Ela que vá criar as crianças e não amole o boi porque a depender de suas atitudes, ainda pode aumentar mais a distância social entre a profissional do baixo ventre, o gigolô apaixonado e o umbigo que se encosta no fogão. Mulherzinha perigosa... Quase tão perigosa quanto a desempregada presa há três meses, por ter surrupiado no supermercado, um pacote de margarina para passar no pão do filho de dois anos.