PENÉLOPE
Carlos Mestre
 
 

Penélope meteu na cabeça a idéia de que deveria usar o velho camafeu, herança da avó Abigail. Eu nunca vira sequer uma foto dessa tal de vovó Abigail. E confesso que a idéia de ter de me enfurnar no sótão daquela casa me trazia grande enfado. Aquela nunca fora a minha casa. Nada ali me pertencia, por herança ou qualquer outro meio.

Quando nos casamos resolveu que moraríamos na casa dos avós dela, já falecidos; e que esse era o desejo deles. Apaixonado, consenti. Mas a paixão sucumbiu à rotina do casamento e eu cuidei, nos últimos 10 anos, de manter-me vivo nos braços de outras mulheres. Contudo outra rotina - a dos encontros fortuitos - já me lançara num poço de depressão cuja única corda eram maciças doses de Prozac. Enfim, eu caminhava célere e seguro na direção do suicídio. Caminhava.

Repentinamente a desordem e a poeira daquele sótão me ocuparam os sentidos de tal modo, que a depressão cedeu seu posto à zombaria e aos insultos. Pensei que consumiria o resto da minha existência naquele pedaço de inferno. Enganei-me. O camafeu saltou - não sei de onde - em minhas mãos.

Tomei-o sem muita curiosidade, mas o alto-relevo da efígie nas minhas digitais emborcou-me numa névoa de bisbilhotice até então desconhecida. Sorri para o deserto escuro daquele cômodo e volvi a pequena lanterna para o camafeu.

A perfeição singela daquela imagem lembrou-me, de alguma maneira, o rosto de Penélope. Mas aquele momento me parecia insólito, porque eu não me reconhecia afável daquela maneira havia tempos. Abri o camafeu e no fundo dele havia uma foto colada num pequeno papel metodicamente dobrado para não lhe sobrar nas pontas.

A mulher da foto era a mesma da efígie, linda como eu nunca vira, a suster o mesmo camafeu no pescoço, com um sorriso de Monalisa em feições de Ava Gardner.

Abri o papel colado à foto e li-o, em princípio apressadamente, receoso de que minha mulher me pegasse em flagrante delito. Mas aquilo que meus olhos percorriam devorou-me o tempo, a pressa, as inquietudes, a insegurança e tudo o mais. Era um texto curto, mas categórico. Ele estava ali havia tantos anos, esperando por mim; porque tudo o que dizia era para mim. E era Abigail que me dizia todas aquelas coisas definitivas. E eu estava zarro por conhecer aquela mulher que me tocava tão profundamente com suas palavras. E eu estava feliz, e me sentia vivo, e me sentia capaz de amar outra vez. E amava Abigail; aquela mulher que eu conhecia tão bem. E ouvi Penélope me chamando. Trancafiei a foto e o papel nos bolsos e desci.

Ela findara a tecelagem de uma blusa, e me oferecia, amorosa, com um sorriso que eu nunca notara. Ainda ao pé da escada mostrei-lhe o camafeu. Seus olhos brilhavam como os de uma criança frente ao primeiro brinquedo. Tomou-o de minhas mãos e colocou no pescoço.

Olhei para Penélope sentada no braço da poltrona, e reconheci a mulher da foto. E ela me disse palavras que me tornavam vivo outra vez. As mesmas palavras contidas no papel que eu, sorrateiramente, guardara.

E tudo aconteceu.

Vasculhei meus bolsos. Fiquei atônito. Eles estavam vazios, mas meu coração repleto. E tudo o que eu desejara eu já possuía. E após 10 anos eu estava de volta.
 
 
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