QUE PERNAS TINHA SIGMUND
Claudio Alecrim Costa

Olho fixamente para o cartão que diz Sandra, psicoterapeuta, enquanto divido o pequeno espaço da sala de espera com duas pessoas. A minha relação com Laura sofrera grande impacto desde que meu desejo se diluíra. Não conseguia, por mais que me esforçasse, ver em Laura o apetitoso prato onde me banqueteava com a voracidade costumeira dos amantes. Pior ainda, o problema parecia ter se estendido a todas as mulheres. Minha alma perturbada vagava impotente por caminhos escuros, reservados àqueles cujas vidas não têm mais sentido. Havia caído em desgraça e permanecia no limbo ouvindo minha própria voz como um lamento eterno.

Em meio a patéticos questionamentos chegou a minha vez...

- Afonso...

Imaginei alguém que tinha a severidade de um padre e a frieza de um radiologista. Mas, ao contrário, o que vi foi a silhueta de uma bela mulher, que sorria um sorriso iluminado, com os cabelos longos descendo suavemente pelos seios rígidos até chegar ao quadril. Uma mulher neoclássica que em nada se assemelhava à idéia da sisuda figura do pai da psicanálise.

Entrei na sala sob penumbra apenas quebrada por um abajur com bordados que se projetavam suavemente na parede. Uma paz me socorreu por um breve tempo.

A decoração minimalista era esfaqueada por tapetes coloridos que matariam Frank Stella e Ad Reinhardt de angústia, espalhando imagens imprecisas de minha infância, pessoas sem rosto, sombras familiares e delírios serenos de uma vida comum e melancolicamente guardada numa caixa sem chaves.

- Pode sentar ou deitar no divã, Afonso...

- Como?

- Você prefere...

Interrompi bruscamente a mulher e, maljeitoso, sentei rígido como um cadáver.

- o que traz você aqui, Afonso?

- Sexo...Quero dizer!

- Não se preocupe...Procure falar de tudo e fique confortável.

Era impossível o que me pedia. Estava sob choque e não conseguia olhar para Sandra sem ver a grande janela de minhas fantasias, com mulheres coloridas flutuando, Vênus com seus braços invisíveis, amor sexual, beleza física, estátuas femininas como colunas gregas que agora sustentavam meus desejos que me sacudiam por inteiro e cruzavam o céu zodiacal com planetas feitos de jóias luminosas sobre fundo azul aveludado.

- Quem me dera...Quem me dera...

- Alguma coisa o incomoda...

- Você...Desculpa!

- É natural na primeira sessão...

Olhava para o pequeno relógio ao lado de Sandra e rezava para que seus ponteiros fossem piedosos e quebrassem a engrenagem provavelmente suíça para livrar-me de tamanho castigo. A cura que procurava havia se transformado em provação.

Quando cheguei em casa, Laura estava no sofá, sentada sobre as pernas, com o corpo encolhido, iluminada pela luz imprecisa da tv. Fiquei parado por alguns segundos, emoldurado pelo batente da porta, até que ela percebeu minha presença. Esticou os braços ternos e voluptuosos. Não imaginava que as porções milagrosas que prometem a cura estavam noutra mulher. O tratamento de prazo indefinido funcionara como um choque. Concluí que a cura para o mal havia se dado como um milagre feito da mesma matéria de Laura.

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