BRECHA
Suzana Garcia

Julio prontamente abriu a porta e com largo sorrido a fez entrar. Ela, sorriu como só as virgens sorriem, escondendo-se atrás dos livros.Sorriso incógnito.

Mais uma aula. Uma hora de puro sonho. Eu ficava escondido atrás da porta e observava atentamente cada gesto daquela mulher que para meus olhos, ainda era a mesma menina. Tímida, escondia seus olhos azuis atrás das lentes. Seu cabelo claro e luminoso, como o sol ao entardecer de primavera, sempre em rabo de cavalo. Por vezes, imaginava-o soltos e ao vento. Observa como ficava rubra ao ser chamada a atenção por Julio. Rapidamente voltava à página anterior e dedilhava a mesma seqüência. Chopin, Bach...

Seus dedos longos me faziam pensar como seriam seus carinhos. Seus caminhos. Seus sonhos. Maestrina, este era seu desejo. Um ano e sete meses, tempo em que três vezes na semana eu tinha torcicolo. Não era nada fácil enxergar pela fresta da porta.

E no dia seguinte Julio me dizia:

- Vá a um médico, não é normal ter tanto torcicolo!

Se ele viesse, a saber, de minha paixão, escondida entre as partituras, certamente me despediria!

Nas viagens de Julio, em eventos "másteres" nos municipais de todo o país, eu ficava horas e horas compondo pra Helena. E meu amor era tanto, que certamente migalhas de paixão seriam descobertas entre o teclado.

Sempre tive medo de ser descoberto, mais ainda por ela. Afinal o que pensaria de alguém que a observava as ocultas? Não é certo! É fato! Por isso eu sonhava. Sonhava que lhe ministrava aulas. Tocávamos a quatro mãos. Ríamos juntos. Chorávamos juntos. Sonhei e amei. Até Julio ter feito o convite para alguns recitais a título experimental. Jamais esquecerei o brilho dos olhos de Helena.

E hoje, ainda atrás da porta vejo-a novamente. Linda, com a mesma luz no olhar e uma gravidez indesejada.

Quem me dera, ter tido coragem de passar pela fresta!

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