DOCE AMARGURA
Bolero com tarja
Leila de Barros
 
 

Hoy mi playa se viste de amargura
Porque tu barca tiene que partir
A cruzar otros mares de locura
Cuida que no naufrague en tu vivir
- Roberto Cantoral -

Há um tempo atrás me deu uma vontade irresistível de dançar boleros. Naquela base de dois pra lá e dois pra cá mesmo, encharcado de perfume, como dizia a canção. Aproveitei a estranha onda que me acometia e fui até comprar brilhantina na farmácia. Acho que esse negócio de idade do lobo acabou finalmente me convencendo de que sou um primata em fase de decadência de estilo.

Já que estava no clima, comprei um guia de lugares dançantes e fiquei entretido procurando um bar ou casa de danças que não me lembrasse o Som de Cristal ou algo semelhante. Nada contra, afinal essa casa já teve seus dias de glória. Liguei para alguns amigos, que estranharam, pois na verdade só nos reunimos para beber, conversar e às vezes dançar em algum lugar conhecido ou até mesmo requintado. Mas, no final, todos levaram na brincadeira e até se animaram com a idéia. Marcamos para o sábado seguinte em um lugar de nome meio francês, que me pareceu altamente favorável ao ambiente que eu procurava. Minha filha me pediu encarecidamente que eu ligasse para um psicólogo, ou que tomasse algum remédio de tarja vermelha, quiçá um Ginko Biloba para ativar a memória recente. Mas, eu a acalmei dizendo que era apenas uma simples nostalgia e que iria me divertir muito.

Chegou a grande estréia de minha pessoa como dançarino de boleros. Eu me sentia um verdadeiro freqüentador do mais característico clube argentino ou cubano. Estava todo imbuído na idéia de que iria encontrar naquele local dançante a própria Luz Del Fuego e isso era tudo o que eu precisava para esquecer minha difícil separação após 40 anos de casado. Até deixei em casa os meus óculos para miopia, pois queria aparentar a figura de um madurão sarado. O ambiente era aconchegante, mas sugeria uma estranha melancolia. Tudo à meia-luz e havia no ar um perfume que me lembrava o cheiro de um inseticida. Mas, fui me envolvendo no clima e resolvi assumir o personagem por completo e comecei a verificar o ambiente em termos de mulheres disponíveis para dançar com este grande dançarino de bolero, novamente disponível no mercado. E a banda afinal começou seu show da noite. Meus amigos já estavam na pista, dançando.

De repente, olhei para uma mesa e avistei "ela". Uma morena de vestido azul escuro, corpo escultural, cabelos negros até quase a cintura e olhos claros dançando próxima de suas amigas, ao som de um bolero convidativo. Obviamente, fui até a mesa dela e a convidei para dançar. Ela sorriu e aceitou - um sorriso que me fez tropeçar duas vezes antes de chegar na pista de danças. E como dançava a linda morena!

Descobrimos tantas afinidades, rimos muito, dançamos bolero com todos os trejeitos e vira-voltas que tínhamos direito... Eu perguntei se ela gostaria de sair comigo no dia seguinte, que seria um domingo. Ela aceitou...

Quando meus amigos voltaram da pista eu, todo orgulhoso, fui apresentá-la a eles. Aí é que eu entendi o que significava "doce amargura". Um dos meus amigos veio rapidamente em minha direção e me perguntou o que eu estava fazendo. Ele me chamou de lado e disse que "aquele" era o professor de danças da academia que ele freqüentava. A tal morena escultural era nada mais nada menos do que um HOMEM e havia sido zagueiro de um time de várzea na nossa adolescência!

Para resumir, fiquei o resto da noite conversando sobre futebol com ex-pretensa morena sestrosa, que afinal entendia mais de futebol do que eu. Bem... nem tudo é exatamente preto no branco. São dois pra lá, dois pra cá...