DE BAIXO COTURNO
José Luís Nóbrega
 
 

O pai era militar, mero soldado, chamado pelos seus pares, de hierarquia superior, de um simples "baixo coturno". É, é assim que o chamavam, é assim que cabos, sargentos e tenentes o apelidaram: Soldado de Baixo Coturno. E assim, o senhor de baixo coturno chegava em casa, com a ira a saltar pelos olhos, com ódio de ser um reles soldado num quartel repleto de senhores de altos coturnos, de homens com o peito cheio de estrelas e ódio para com seus inferiores. Chegava bufando como um touro depois de ser espetado diversas vezes por um sórdido toureiro. Chegava do quartel como quem perde a guerra, sendo preso e humilhado ao final pelo inimigo.

- Engraxa aqui, seu idiota! - dizia o soldado de baixo coturno, colocando os pés na mesinha do centro da sala, apontando o coturno para o filho que descansava no sofá ao lado.

O menino, feito a um cachorro depois de apanhar do dono, abaixava a cabeça, e mudo, ia até a despensa, pegava a graxa, retornava à sala, ajoelhava-se defronte aos pés do pai que, com o quepe na mão, aguardava que o filho lustrasse seus calçados. Enquanto o menino transpirava em bica, esfregando a escova no "baixo coturno" do pai, este, por vezes, batia insistentemente com o quepe na cabeça suada do pobre filho, repetindo aos gritos:

- Seu idiota, aqui, ó! Não tá vendo? Lustra mais aqui, seu idiota! Ali, agora...

E o humilhado filho continuava a esfregar e esfregar o coturno do pai, fazendo o brilho surgir ali com próprio suor que respingava do rosto cada vez que recebia uma pancada na cabeça, advinda de um quepe roto e cinza. Terminado o engraxamento, o menino se levantava. Também o pai se levantava, e ficava por instantes a olhar para os coturnos, que luziam feito estrelas em noite de lua nova. Depois batia pela última vez na cabeça do pequeno, que de olhos perdidos no chão, dirigia-se para a cama, derramando em silêncio pelo corredor seu pranto juvenil, seu ódio por aquele pai que só se apresentava nos finais de tarde, que só se apresentava para humilhá-lo, para fazê-lo lembrar que nascerá idiota, cresceria idiota, e morreria um perfeito idiota, a lustrar coturnos imundos com o suor do próprio rosto. Mas, eis que um dia, ou melhor, eis que num final de tarde, o pai não voltou do trabalho. O menino já o aguardava no velho sofá rasgado. Os olhos do garoto fixos na TV, pensamentos no que estava por vir, na humilhação certa que chegaria em instantes... No entanto, naquela tarde fria, a humilhação não veio, apenas um homem alto, quepe novinho e cinza na mão, peito parecendo uma constelação e coturnos mais lustrosos do que aqueles que o guri engraxara por anos, trouxe a fatídica notícia: o pai sofrera um grave acidente no quartel, e naquele momento, lutava pela vida num quarto de hospital.

A mãe chorava ao lado do leito. O menino quase não olhava para o rosto do pai que estava encoberto por faixas e um cano a sair pela boca. O olhar do garoto se perdia entre objetos que emitiam sons graves, agudos, luzes verdes, vermelhas, um aparelho que mais parecia uma sanfona subia e descia cada vez que o peito do pai se contraía e relaxava. Nunca tivera uma visão como aquela! A vontade de brincar com aquilo tudo fazia o pequeno corpo do menino soltar breves tremores. A felicidade num final de tarde depois de anos de humilhação. Passou por debaixo da enorme cama uma, duas vezes, até que na terceira... a aparição de algo que o amedrontara por anos: os coturnos do agora moribundo pai ali, embaixo da cama, empoeirados. Desta vez um tremor de medo, e não mais de alegria, de liberdade, percorreu aquele pequenino corpo. Saiu lá debaixo bem de mansinho, como que não querendo acordar aqueles coturnos imundos. Voltou para a cabeceira do pai, a mãe soluçava mais alto, um som estridente vindo de um aparelho, as luzes haviam se apagado, a sanfona ao lado parara de subir e descer, assim como o peito do pai. Então, a alegria... Liberdade! Nunca sentira aquilo num final de tarde! Nunca vivera um final livre de tarde para brincar. O menino sai pelos corredores a assoviar a velha Canção do Infante, saltitando com dificuldade, apoiando-se nas paredes brancas, coturnos empoeirados nos pés, suor a lustrar o mirrado rosto, pura "idiotice" de uma livre e alegre criança...