O FEITICEIRO AFRICANO II
Conversas com Barravento*
Thaïs Martins
 
 

Vento forte, vento calmo, passou por mim um Orixá, aquele que reencanta a existência e confere forças às palavras; nestas últimas eu lhe dei assento.

- "Vento sagrado, o feiticeiro branco trouxe você até mim, venha calmo trazer axé ao meu canto".

Eu me lembro quando, pela primeira vez, eu pude me expressar sem ensaios. O enorme pé que esmagava o meu peito deu um passo para trás, libertou-me de seu peso e pude expirar o que estava preso na minha alma.

-"Será, Barravento"? Eu suspeito que os registros que se amontoam bem lá dentro, no escuro, estão grudados cada qual ás suas palavras e não resistem a uma pobre tradução.

Longe de meu clã, Eu era eu, o Nós da minha tribo não falava francês, não sabiam os novos nomes luminosos com os quais eu aprendia a renomear cada coisa. Comer, amar, dividir, multiplicar, sonhar; sem suas memórias perversas encheram de luz aqueles espaços de liberdade e me autorizaram a pesquisar outras tradições.

Vento forte, vento calmo, passou por mim o Orixá que cuida das coisas do amor e me trouxe um namorado africano. Ele é negro, forte, cresceu junto com 21 leões, lá no meio da floresta, perto de onde moram os pigmeus. É sorridente, feliz, e cheio de feitiços me ajuda, paciente, a redescobrir a mulher que eu sou. Sobre isto, agora ela me mandou ficar quieta, vocês vão ter que ler o livro para saber como se trepa de acordo com um cardápio Afro-Brasileiro-Nagô-Frances.

Juntos, até parece que construímos um novo mundo; pensamos ia durar só seis meses, já se passaram 25 anos.

A cada novo ciclo eu reconto para ele esta história, ele a quer escrita e iluminada pelo seu desejo, pelo amor que ainda sente. Aprendeu isto com seu avô e diz que se eu souber conta-la de um jeito certo vamos poder apagar as tristezas sem sentido, que guardamos ao nos despedir.

Ontem eu descobri, pela mídia, que ele, como eu, ainda usa em seu dedo mínimo, nosso pequeno anel de compromisso. Apaixonada, nem sei mais se sou branca ou se sou negra, se "o leão que está perto do meu pescoço de girafa morde e se é perigoso". Também, nem tenho certeza se é verdade que ele alucina serpentes ou se acredita que aquela cobra que engole o próprio rabo reaparece a cada recomeço.

- "Será, mesmo, Barravento, que ele me levou, numa viagem astral, para assistir ao enterro de seu avô paterno, aquele que era pastor, xamã e curandeiro"?

Vento forte, vento calmo, passou por nós um outro Orixá, logo agora que participávamos de um banquete cheio de comidas que o Santo oferecia aos seus filhos para que se curassem do banzo. Ao prepará-lo, eles cozinhavam cantando, temperavam a comida com uma frutinha silvestre que, eu garanto, usada do jeito certo e na hora adequada, era afrodisíaca.

- "Será, Barravento, que eu consigo decifrar os segredos disto que eu vivi? Compreender outros sistemas cosmológicos até pode ser fácil. E eu, como fico depois de abrir meus baús de Sinhá, risos, era assim que seus amigos me chamavam, para recontar este romance, que você me mandou reviver através de pequenos casos?". "E agora, meus Orixás, eu só preciso lhes dizer o que, vocês mesmos já me asseguraram, ai que bom, estou dispensada de lhes prestar quaisquer outras homenagens e obrigações."

* Ancorado no texto: Um Vento Sagrado. História de vida de um adivinho da tradição nagô-kêtu brasileira. Muniz Sodré e Luiz Felipe de Lima.Inspirado nos ritmos do conto Quimera, de Rosi Luna, www.anjosdeprata.com.br. Desenvolvido como parte dos trabalhos da Oficina de Literatura da CPFL, sob orientação do Professor Cid Pimentel.

 
 
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