ZÉS DA VIDA
Claudia Sanzone
 
 

O último paciente da tarde tinha deixado o consultório fazia poucos minutos. Vinha há meses sofrendo de dores terríveis na coluna. Contudo, após dez sessões de fisioterapia, estava se sentindo bem melhor. Demonstrou sua gratidão calorosamente, com um abraço apertado no doutor. Amassou o jaleco impecável, branco e todo alinhado do profissional. Naquele momento o doutor se punha em frente ao espelho a corrigir sua vestimenta. Permaneceu por uns instantes se recompondo e divagando. Crescera num bairro do subúrbio carioca, em casa humilde. A família era de poucas posses e de gente boa. Jogava pelada na rua e fazia sempre questão de estar no time dos com camisa. Preferia roupa a brinquedo. Comemorava aniversários e natais sempre comportado, preocupado em não desarrumar suas vestes. Na adolescência trabalhava como boy e ganhava um dinheirinho suficiente para combinar cintos com sapatos e camisas com casacos - e estes deveriam pousar rigorosamente ao acaso e sobre os ombros, com direito àquele nó feito com as duas mangas, na altura do peito.

Zezinho chegou a Doutor Pedro Bragança com determinação e a ajuda financeira da mãe. José Pedro da Silva Bragança era um nome que trazia a combinação genealógica alternada e irônica da popularidade com a fidalguia. Quando menino, era o Zezinho, um Zé da Silva. Depois da formação universitária, só se conhecia o Doutor Pedro Bragança. Impressionante como se sobressaía bem o nome precedido do dê erre e bordado em verde-musgo na borda bem acabada do bolso do tal jaleco branco. A maleta preta que portava seus instrumentos de trabalho - e uma vez devidamente segura por uma das mãos - formava o traje completo do diplomado. O espelho do consultório confirmava o fato de que a pele quase negra do Dr. Pedro fazia um contraste feliz com aquele verdadeiro manto branco. Mas, verdade seja dita, também dedurava que a pouca estatura e um certo sobrepeso roubavam um bocado de elegância do modelo.

Depois de devidamente endireitado, resolveu ir à rua com a intenção de comer alguma coisa. Deixou o consultório, desceu a rampa da clínica e sentiu o cheirinho de pipoca no ar. Andou uns dez passos e se aproximou da carrocinha. Cadê Seu Zé Pipoqueiro? Talvez estivesse lá dentro do boteco do Zé Pinguço... Enquanto procurava pelo pipoqueiro com os olhos e sem se afastar da carrocinha, ouviu uma voz indefinida, fanhosa e meio fina que vinha por trás de seu ombro, junto com uma nota de cinqüenta reais: "Ô moço, me vê aí um saquinho da salgada, a de dois real." Indescritível e desnecessário revelar a sensação do doutor. Encheu o peito e virou-se de frente para a voz, rangendo os dentes e trancando as mãos. Deparou-se com um abdômen do tipo tanque, cuja largura não permitia visão lateral, e o rosto do armário só era visto a uns vinte e cinco centímetros, mais acima. "Pô, rapaz, desculpe, mas tô sem troco."

Retornou teso e a passos firmes à clínica. Entrou no consultório, deu uma nova endireitada na indumentária, passou a mão na maleta preta e saiu novamente porta afora, portando a dita-cuja. Caminhou uns vinte passos para o outro lado, em direção oposta à carrocinha de pipoca. Sentiu-se aliviado porque logo avistou a barraca de doces e Seu Zé do Coco, que estava no comando dela. O simpático ambulante o recebeu com um sonoro "boa noite, doutor!". Mais relaxado, Dr. Pedro Bragança sorriu e pediu uma generosa fatia de cuscuz. Aliás, duas.