ÚLTIMO DESEJO
José Luís Nóbrega
 
 

O sotaque italiano fazia daquele homem um ser ainda mais rude. Voz rouca devido ao excesso de fumo, sobrancelhas que lembravam enormes taturanas, rugas a franzir a testa. Boca sempre torta a prender o malcheiroso cachimbo. Todos naquela casa morriam de medo daquele decrépito calabrês.

A mulher, dona Antônia, temia tanto o marido que mal olhava para aquela face enrugada e pálida. Os gritos do velho a exigir café, água e remédios para os mais variados males ecoavam como trovões pela ruinosa casa. Mais, eis que um dia, um trovão, ou melhor, um berro ainda mais assustador fez mulher e filhos estremecerem na antiga casa em ruína: "Onde está meu cachimbo?".

Antes mesmo que o velho terminasse de berrar com a boca torta a palavra cachimbo, dona Antônia e os dois filhos já estavam na ponta oposta da mesa, olhar a varrer o chão à procura do objeto perdido.

Depois do segundo berro a exigir: "Onde está meu cachimbo?" - um soco ainda mais forte na mesa fez com a esposa saísse desnorteada pela casa, vasculhando armários empoeirados, enquanto os filhos saíram em disparada em direção ao quarto dos pais, onde o objeto do desejo do enfurecido genitor poderia estar.

Vasculhada toda a casa, mulher e filhos voltam à mesa, onde o velho ainda permanece sentado, batendo o isqueiro sobre o verniz descascado pelos anos de repetição daquele mecânico ato. Ela, com a voz pastosa, diz que o cachimbo não fora encontrado. Ouve-se então o mover da cadeira no assoalho carcomido pelo cupim. Ele se aproxima em silêncio da mulher, desferindo-lhe um soco, fazendo surgir uma mancha negra a circundar o olho azul da também descendente de italianos, de nome Antônia. A mulher agredida, depois de anos sem olhar para a face do marido, fita-a com um olho a lacrimejar. Sobrancelhas por aparar, rosto pálido, o maldito e malcheiroso cachimbo a descansar naquela horrorosa boca torta. O velho cachimbo esteve por tantos anos ali, que agora, na velhice, seu dono nem mais o sente entre os grossos lábios. Os filhos se retiram em silêncio, seguidos pela mãe a sentir o coração pulsando no olho direito...

Meses depois o velho calabrês morre em decorrência de problemas pulmonares. Seu último pedido, deixado num bilhete, seria então atendido pela mulher, sem ressalvas. Teria que ser velado e enterrado com o cachimbo na boca, que segundo ele, fora seu melhor parceiro por anos e anos. A certa hora da noite, todos no velório estranham a atitude da viúva. Ela se aproxima, retira com cuidado da boca torta do marido seu velho e malcheiroso companheiro, e com delicadeza aperta a boca do cachimbo sobre o olho direito do falecido, deixando ali uma mancha negra, igual à mancha que ela carregara meses atrás, quando havia sido agredida por aquele crápula de boca torta e sobrancelhas por aparar. Devolve com mais cuidado ainda o cachimbo à boca do finado marido, se retirando em seguida, sendo acompanhada em silêncio pelos filhos, que sentem o coração pulsando mais forte no peito...