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CONTOS COLETIVOS

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AS CALCINHAS DA DAGMAR
outra história de amor, sexo, ciúme e traição
 

Ernesto andava encafifado. O que Dagmar estaria fazendo pelas tardes?

No mês anterior ele viera pra casa mais cedo e ela, nada. Apareceu depois das seis, com um jeito meio sonso, explicando que a tia estava doente, sabe amor, é aquela gastura danada que ela costuma ter, diz que é um nó nas tripas, uma ânsia que vem subindo... subindo... Ernesto pediu que parasse por ali, quem já estava com ânsia era ele. Dois dias depois precisou vir apanhar um documento fora de hora e Dagmar? Nada. A casa afogada no perfume dela, mas de resto era só silencio. Ele veio e foi e a noite não comentou o fato. Desse dia em diante dava umas incertas, uma vez era que a cabeça doía, na outra uma desculpa qualquer. E Dagmar nada. Ernesto já estava com a pulga atrás da orelha.

Passou a vigiar a mulher. Andava aflito, inseguro, telefonava pra casa de meia em meia hora. Zé Mário estranhava o amigo. Na repartição a hora do café sempre tinha sido sagrada. A turma se reunia, era o cigarrinho, falar de futebol, da mulher alheia, da gostosona do quinto andar. Deu? Não deu? De quem é a vez? Ernesto era sempre o mais animado. De uns tempos pra cá ficava meio aéreo, era sempre o primeiro a voltar para a sala e quando se via estava já ao telefone. Um dia desabafou:

- Tenho certeza Zé. Tem boi na linha. Olha lá, o telefone não atende. A vagabunda deve estar por ai...

Zé Mário desconversou. Que ele deixasse disso, Dagmar sempre fora a esposa modelo. Mas Ernesto balançava a cabeça.

- Foi, Zé... Foi... Hoje em dia não pára em casa, diz que vai aqui e ali, mas anda pelo cabeleireiro e você não vai acreditar, achei enfiada atrás do armário uma caixa com umas calcinhas daquelas... Daquelas Zé... de puta...

Tanto Ernesto reclamou, disse e não disse que Zé Mário, um dia perdendo a paciência sugeriu:

- Por que você não contrata um detetive? Ao menos resolve isso, e pára com essa agonia.

Zé Mário deixou o pobre do Ernesto ainda mais desconfiado, com a pulga atrás da orelha. Detetive... hum... a idéia tirou o sono do coitado. Como pagar um detetive e um mico desse tamanho?

Onde tinha errado, meu Deus? Tá certo que ultimamente andava bebendo mais cerveja do que deveria, relaxou em muitas coisas e, reconhecia, ficara meio desinteressado em sexo. No começo Dagmar reclamava:

- Ernesto, você não me procura mais!

Depois os lamentos se transformaram em saídas e Dagmar se tornou bem alegrinha. Será que ele merecia os chifres imaginados? Estaria mesmo sendo traído? Ah, dúvida. Mas aquelas calcinhas atrás do armário, sei não. Não era caso pra detetive. Tava na cara. Como se não bastasse o inferno da sua vida, martirizava-se por ter contado ao amigo sobre suas desconfianças. E tinha razão. Zé Mário, boca de caçarola, já tinha repassado ao Cunha.

Cunha era o come quieto do setor. Bem apanhado, ar de moço distinto, boa pinta, ternos bem cortados e charmosíssimo. As mulheres se derretiam por ele.

- Dagmar, é? Mulher do Ernesto? Hum...

Pronto. Foi o que bastou para atrair a atenção do desgraçado.

Certo dia, Dagmar estava saindo de casa, seios apertados no decote imenso, sofria de calores excessivos, naquele perfumeiro de entontecer e quase trombou com um homem parado em frente à esquina.

- Por favor, estou procurando a casa do Ernesto. A senhora conhece.?

No primeiro momento desconfiou, mas o sujeito era bem apessoado, moreno, meia altura, uma grisalhice começando nas têmporas, parecia confiável.

- É aquela casa, bem ao lado da jabuticabeira. Pode me dizer o assunto? - sorriu branco de pérola - eu sou a mulher dele. Dagmar, às suas ordens...

- Dagmar... que lindo nome!... Combina com a dona. Eu sou o Cunha, colega do seu marido no escritório.

A morena desarmou a guarda. Moço bonito, educado e galanteador, resistir, quem há de?

Ninguém soube as razões daquela visita inesperada. Muito menos Ernesto, com a esposa cada vez mais distante, menos interessada no serviço da casa e do marido. E as calcinhas continuavam atrás do armário. Ernesto cheirava uma por uma. Sempre bem arrumadas, parecendo sem uso. Mas... e o perfume? Aquele mesmo cheiro enlouquecedor da Dagmar quando saía para visitar a tia doente, bordar enxoval de crianças órfãs ou ler para cegas. Mulher mais caridosa ele nunca vira. Quando tentava argumentar que a bondade dentro de casa também era necessária, ela danava:

- Deu pra ter ciúmes das pobres criancinhas órfãs, sem pai, sem mãe, sem roupa nova? Ou das pobres ceguinhas enjeitadas que não vêem a luz?

Dagmar jogava o lugar comum na cara dele e o pobre sentia o golpe, se encolhia - era um sem coração, um canalha.

E as calcinhas? Como explicar aquilo? Já não conseguia trabalhar direito, nem mesmo a cerveja ajudava a afogar o ciúme. Sem coragem de perguntar ou ir atrás da mulher, resolveu seguir o
conselho do Zé Mário. Tinha que ser detetive desconhecido, de anúncio de jornal, ninguém podia saber.

Dagmar parecia tão pura, tão inocente, uma menina! mesmo nas unhas pintadas de vermelho sangue, no cabelo ruivo e no perfume exagerado. Era o jeito dela. Vaidade de moça. Quase desistiu diante da porta envidraçada com o letreiro:

CARLOS ANTUNES - DETETIVE PARTICULAR.
PRIVACIDADE ABSOLUTA

- Bom dia, em que posso servi-lo?

O homenzinho desaparecia diante da mesa do escritório. Miúdo, cara comum, magro, o tipo em quem ninguém repara. Perfeito para um seguidor de gente. Ernesto gaguejou, a voz não saía.

- É caso amoroso? Desconfiança de mulher?

A voz cúmplice de quem já viu de tudo.

- Não é bem desconfiança... A Dagmar nunca me deu motivos. Mas...

O detetive concordou com a cabeça. O problema era o Mas.

De repente, Ernesto desabou, confessou sua desgraça ao desconhecido: as saídas diárias da mulher, o perfume exagerado, a caridade cristã excessiva, tudo ele aceitava, tudo, menos as calcinhas atrás do armário. O detetive, ouvinte entediado, se mexeu na cadeira diante desta última palavra:

- Calcinhas?

- Calcinhas, doutor. Uma caixa delas, escondida atrás do armário. Daquelas de puta, cavadas, perfumadíssimas.

O outro respirou forte:

- Calcinhas escondidas... hummm

Ernesto morreu por dentro. Mas o homem não esperou o velório e continuou:

- Preciso seu endereço, nome da mulher e a foto. Amanhã mesmo. E quero ver as calcinhas.

No dia seguinte, um obediente e cada vez mais emagrecido Ernesto apareceu diante do homenzinho com a foto da mulher e uma caixa de papelão.

- Está aqui, doutor, o motivo da minha desgraça.

O detetive pegou a caixa com dedos práticos e abriu:

Calcinhas de todo tipo, rendadas, cavadas, enfeitadas com lacinhos, pretas, rosadas, lilás. Todas elas mínimas, sedutoras, indecentes. E o perfume... uma loucura! O homúnculo se mexeu na cadeira, respirou forte, pegou a foto da morena: linda, sorriso iluminado, olhou de novo para as calcinhas.

- Dagmar.. - suspirou

Detetives também são filhos do diabo.

Mal passava das dez da manha e Dagmar já estava com o coração na boca. Não entendia como a caixa de calcinhas tinha sumido. Ontem mesmo tinha passado os olhos em todas e prometido ao Cunha, num telefonema rápido.

- Amor... Amanha você vai voltar meio zonzo do almoço. Vou usar a sua calcinha predileta.

- Qual, meu docinho de coco?

- Aquela de renda, lilás, cavada com lacinhos. Aquela que você tira com os dentes, lembra?

O Cunha mal podia respirar de tanta ansiedade. Essa mulher era muito melhor do que o marido pensava, ou pior...

E agora onde foi parar aquela maldita caixa? - Será que esqueci pela casa enlouquecida de tanto sonhar com o dia de hoje?

O relógio parecia que tinha resolvido andar contra ela. Tinha encontro as onze e quinze em ponto, por que o Cunha batia o ponto as onze e não podiam perder nenhum segundo. Tudo combinado. Ele saia correndo da empresa, virava duas quadras à direita e depois três à esquerda e lá estava o hotel
barato que se encontravam. Pronto! Era lá que o dia se iluminava e o amor rondava o universo.

O estomago estava cheio de borboletas, as horas voavam e era melhor ela ter juízo e ir sem calcinha mesmo. Ou melhor, ir com calcinhas comuns e deixar a vida se encarregar. O Cunha não era como o Ernesto, sem imaginação, sempre cansado e ausente. Ele ia saber compensar a falta da tão petulante calcinha e compensar aqueles momentos de atraso. Passou o perfume enlouquecedor, fechou as janelas, conferiu os bicos do gás e pensou mais uma vez nas horas de prazer que a aguardavam. Olhou pela última vez no espelho do corredor, levantou o nariz e prosseguiu em sua jornada de vida dupla.

Por milagre conseguiu chegar as onze e cinco. Pegou as chaves na recepção da espelunca chamada de hotel e subiu passo a passo. A escadaria era recoberta por carpete vermelho carmim surrado e sujo. O corrimão era de um dourado tão velho e vagabundo que pareciam guardar o calor das mãos e o suor das pontas dos dedos que os tocaram nos últimos quarenta e três anos. Parou na porta do quarto trinta e dois, enfiou a chave na porta e entrou rapidamente, não sem antes olhar para ambos os lados do corredor longo e escuro.

Tirou os sapatos, pousou a bolsa na poltrona e correu para a janela que dava exatamente para a ultima esquina que ele virava. Imediatamente o sorriso veio nos lábios. Lá vinha o Cunha. Apressado e cheio de vida. O coração batia mais forte que nunca, as mãos geladas de ansiedade e desejo. Viu sua cabeça desaparecer sob a entrada do prédio e uma imagem estranha desviou seus pensamentos.

Na esquina, com uma máquina fotográfica nas mãos viu um homúnculo. Por um momento achou que ele estava seguindo alguém, mas esta era a hora mais esperada do dia e não era um tipo esquisito e avulso que iria desviar sua atenção.

Correu de um lado para o outro, tirou a roupa, peca por peca e deitou sob os lençóis quase transparentes de tão usados e esperou seu amante predileto.

Lá fora a vida corria. Ali dentro a vida volitava. Dentro dela as borboletas se alvoroçavam...

"É corno" pensou o Detetive, pedalando ligeiro sua calói, enquanto, do outro lado da rua, seguia Dagmar, que saíra de casa num vestido estampado justo, de salto alto, andando ligeiro. Arriscou se aproximar, cruzando a rua e ultrapassando-a, seguindo adiante, sentindo-lhe o cheiro. Tem jeito de potra no cio e nesse mato tem coelho entocaiado.

Andou algumas quadras, parou fingindo ler as manchetes dos jornais expostos, do lado de fora da banca de revistas, e não se surpreendeu em vê-la entrar apressada no Hotel Sedução. Sacou a câmera do bolso e tirou algumas fotos da fachada. Em seguida encostou-se num carro estacionado, próximo a esquina, apanhou um cigarro no bolso de dentro do paletó e riscou o fósforo.

Nem bem deu a primeira baforada, viu um moço andando afobado, bem vestido, de terno claro, levando uma mochila amarela. Ao vê-lo subir os dois degraus que separam a rua do sedução prendeu o riso no canto da boca...

Cunha olhou o relógio em cima da Recepção e perguntou sobre as chaves. Com uma piscadela de olho e um gesto com a cabeça, apontando para a escada que leva aos quartos, soube que "madame já chegou".

"Ah, Dagmar" pensou apertando o passo, subindo de dois em dois degraus, numa febre de volúpia e desejo, "não sabe o que lhe espera minha cabrita, a mais gostosa de todas, fogueira santa dos meus dias onde ardo meus mais secretos pecados".

Parou por um segundo diante da porta do quarto, respirou fundo e girou a maçaneta entrando. Sobre a cama de espaldar alto, mais velha do que antiga, deitada nua, ela o esperava com olhar indecente e sorriso maroto. Tirou o paletó, e ajeitou-o cuidadoso no encosto da cadeira do criado mudo, próximo a porta. Afroxou a gravata, abriu os botões da camisa com seus olhos presos no dela, cheio de tesão. Largou no chão os sapatos, as meias, o cinto; abriu o zíper da calça e quase podia ouvir as batidas do coração dela no compasso de sua respiração ofegante. Pela primeira vez desviou os olhos dos dela. Da mochila tirou as algemas, um cacete de quase 30 centímetros, o chicote, e vestido apenas com seu cuecão de couro, partiu para o combate!

Dagmar olhou pra ele e arregalou os olhos, achou que estava tendo um pesadelo. A imagem daquele cuecão de couro caiu sobre ela como um raio.

Lembrou-se do empregado da fazenda do seu pai que a raptou e levou-a para a casa dele, lá na barranca do rio. Voltou à cena, ela com a boca fechada a esparadrapo e amarrada com um lenço vermelho, ia sentada na garupa do cavalo, agarrada no Juvêncio para não cair. Ele se esfregando nela com uma perneira de couro fedorenta, curtida a pinga, suor e bosta de boi.

Diante desta lembrança a Dagmar de pombinha virou gralha, começou a berrar; histérica ficou meio cega, não enxergava direito. O Cunha e o Juvêncio para ela, agora, eram a mesma pessoa.

- Socooooorro papai, socoorro Ernessssto, estão me atacando.

O Cunha deu um passo para frente segurando o cacete de borracha cor-de-rosa e tentou agarrá-la.

- Meu amor isto aqui é de mentira, veja o meu pau é que tem o tamanho exato do seu prazer. Pega nele, é todo seu. Tentou tirar a pica pra fora, não achou a braguilha.

E a cabrita gritando - Saaaaaia daquiiiiiiii peão, ontem eu pisquei pra você só pra fazer pique, sua calça suja cheira a esterco de vaca.

Ele sentiu a trepada quase perdida, afastou-se da cama, foi até a janela tomar ar. Disfarçado negaceou a rua pra ver se alguém olhava. Nisto ela ficou quieta, começou a se recuperar, animado ele retornou à luta.

- Não vou lhe machucar, amor, a gente vai só brincar com este chicote, se você gostar eu trago, também, uma bota preta. Veja o lenço é novo, comprei-o para vendar você e fazermos o jogo da cabra-cega.

Ao falar em amarrar os olhos dela com aquele lenço ele cutucou a ferida, acordou os fantasmas da bela. E ela viu de novo aquele homem cambaleando de tanta cachaça, bem ali na sua frente.

"É ele mesmo, meu Deus, é o Jumé", apelido do Juvêncio entre os companheiros de boteco.

Apavorada pegou a banqueta que estava aos pés da cama e atirou nele. Errou o alvo, acertou na janela aberta; aquela coisa foi cair diante da porta da espelunca, sobre uma caçamba de entulhos, fazendo um barulho enorme.

A calcinha feia, bem enganchada em uma das pernas do móvel, disfarçada e escondida sob o vestido de seda colorido, foi junto pela janela.

Logo em seguida o telefone tocou, o Cunha atendeu, era o porteiro daquele hotel vagabundo, ponto de encontro do pessoal da zona. Já treinado em confusão, apenas disse.

- Doutor Antônio da Cunha, a sua diária já venceu. Ele respondeu cheio de cerimônia.

- Obrigado amigo, pago outra; preciso de um tempo, ainda indefinido, para arrumar as malas.

O detetive, que esperava na esquina, viu uma coisinha lilás, esfiapada, voar até ele e cair a seus pés. Abaixou-se para ver o que era.

Já de volta ao seu escritório, Carlos Antunes, o detetive, baforava seu cachimbo italiano. Encostado à cadeira, punha os pés sobre a mesa e, entre um trago e outro, apoiava a cabeça sobre as mãos cruzadas. De onde estava, lia entre orgulhoso e desiludido, pelo avesso, o vidro da porta:

CARLOS ANTUNES - DETETIVE PARTICULAR

E voltava para o seu caso. Sobre a mesa, o única peça concreta que conseguira para compor a história: uma calcinha lilás velha, descuidada... Será mesmo que era de Dagmar? Então pensava a que ponto ele tinha chegado em sua carreira de investigador. De seu currículo, orgulhava-se dos casos mais importantes: da vez em que descobriu as tramóias do Collor, de quando grampeou o telefone do ACM e, mais recentemente, do dia em que conseguiu provar por A mais B que o Lula sabia, sim, de tudo o que acontecia no seu desgoverno - e, coisas da podridão do poder, esta sua última descoberta o predestinou negativamente: de súbito, toda a alta cúpula passou a evitá-lo, temerosa. Ninguém queria ser o próximo alvo.

Agora, meses depois, sua vida mudou do vinho para a água. Passou a seguir mulheres infiéis a mando de cornos incrédulos:

- A única vantagem - pensou alto - é que elas são as mais suscetíveis...

E começava a se lembrar das peripécias que protagonizou, traçando as mulheres em troca de silêncio. Ele que quando investigava os políticos jamais aceitou suborno algum, não se fazia de rogado em sucumbir aos prazeres da carne.

Tentações...

- Ernesto! Ernesto! Que tanto digita aí em seu computador homem? Está com alguma namoradinha virtual é?

- Não meu doce, apenas relembrando meu tempo de jovem escritor. Desde que nos casamos eu abandonei as letras.

- Ah é? Deixa eu ler então. É uma poesia? Ah! Que lindo. Escreveu para mim, que doce! Eu já pensava que você não me amava mais.

- Pois é minha linda. Pois é!

Disse isso e recolheu as páginas impressas. Guardou como sempre na caixa de papelão atrás do armário.

- Amorzinho. Não se esqueça que hoje aquele seu amigo de olhar comprido vem com a esposa para o jantar. Traga um bom vinho que vou preparar um jantar delicioso.

- E as crianças do asilo? Não vai visitar hoje?

Dagmar percebe o olhar desconfiado do marido. Ela sabe que já há algum tempo ele tem demonstrado muita desconfiança. Bem que a mãe avisou. Mineiro é bicho desconfiado!

- Não meu amor, hoje ficarei em casa.

Ernesto saiu finalmente para o trabalho. Como de costume, deu uma volta na quadra e passou novamente em frente de sua casa, para ter certeza que a esposa não sairia. Um dia criaria coragem e contaria a ela as suas fantasias mais secretas, como a de vê-la na cama com outro homem.

Dagmar esperou a já conhecida passada do marido em frente à casa e resolveu:

- Hoje eu pego esse descarado. Vou descobrir o que anda escrevendo.

E não fez outra coisa. Sua respiração ficou ofegante, seu coração palpitava no pescoço quando pegou a caixa secreta. Antes de abrir ela abraçou a caixa ao peito e pediu a Deus que não fosse o que ela imaginava. Tirou a tampa devagar e viu a papelada toda que seu marido andou digitando. Retirou-as e, imediatamente uma sensação horrível de medo, angustia, tristeza e por fim de raiva tomou conta de seu ser.

Por debaixo dos papéis havia calcinhas, dezenas delas, de todos os tipos, até mesmo uma calçola imensa, de malha...

- Peraí... Calçola imensa de malha? Esta é a calcinha de sua mãe que foi perdida em sua última visita. Ela procurou por dias e chegou a culpar o Antunes, seu cão.

E tinha mais, muito mais. Calcinhas foram perdidas em sua casa durante anos, de primas, sobrinhas, irmãs, afinal sua família era imensa, e também as suas próprias calcinhas, várias calcinhas de Dagmar. Estranhava a perda das calcinhas, mas a culpa era sempre do cão Antunes, que vivia enterrando coisas no quintal. E esse perfume barato, que nojo!

Certamente seu marido era maníaco e ela nunca se deu conta disso.

Por alguns instantes deixou as calcinhas de lado, recolheu os papéis, sentou-se no sofá e começou a ler a primeira página:

"Ernesto andava encafifado. O que Dagmar estaria fazendo pelas tardes?..."

Ela leu cada uma das páginas. De seus olhos brotavam lágrimas feito correnteza de rio descendo a serra. Imaginou estar casada com um estranho por todos esses anos. Sempre fora uma mulher honesta, sincera, fiel. Como ele podia imaginar tudo isso, e ainda por cima usou o nome de pessoas tão chegadas como o Cunha, nosso compadre e até mesmo de seu cão Antunes.

Estava decidida: iria dar o troco a Ernesto, ele se arrependeria até seus últimos dias de ter escrito aquelas coisas horríveis.

Depois de dois meses Dagmar ainda não recuperara a memória. O diagnóstico do psicólogo era definitivo: "Lapso amnésico post-stuprum". Em bom português: quando Dagmar viu o instrumento cor-de-rosa nas mãos do Cunha, a lembrança do velho Jumé aflorou em sua mente, fazendo-a reviver, entre lágrimas, a posse selvagem. (Ali, onde ela chorou, qualquer um chorava.) E sobreveio a amnésia. Dagmar empurrou para o fundo da memória tudo aquilo que lembrasse sexo.

Dois meses. Ernesto voltou a conversar com o psicólogo: Dr., o quê devo fazer? O conselho do especialista foi para Ernesto fingir que escrevia um romance, no qual relataria fatos verdadeiros de suas vidas, na tentativa de que, ao lê-los, Dagmar fosse aos poucos recuperando a memória.

O caso era pior do que se pensava. Dagmar não reconhecia sequer suas próprias calcinhas. Não se lembrava do Hotel Sedução, nem das tardes loucas passadas ao lado do Cunha. Muito ao contrário, arquitetava terrível vingança, da qual Ernesto jamais se esqueceria. Muito pior que um simples assassinato, como chegou a imaginar. Assassinato é coisa para amadores. Buscou um anúncio de detetive particular no jornal, botou a caixa com as calcinhas debaixo do braço e rumou para o endereço do investigador. Ao chegar, ficou na sala de espera, até ser chamada.

Debruçado sobre os papéis espalhados à sua frente, Carlos Antunes sentiu um cheiro conhecido, que vinha da sala de espera, e que lembrava o robalo à moda Capixaba que tanto apreciava. Sua boca encheu-se saliva.

- Que entre o próximo!

Dagmar vacilou. Instinto feminino aceso, porém foi a voz poderosa, tremor característico de macho pronto para todas as inconseqüências, que fez despertar, lá no fundo da mente, o espectro de Jumé, pavoroso, ordenando que ela parasse de chorar, de resmungar: "Cala boca e chupa!". A caixa apertada contra o corpo. Os odores escapando e, certamente, alcançando as narinas do lobo. O mesmo timbre de comando, expectativas e desejos formando a voz que atravessara a divisória. Ela tentou fechar as frestas na tampa e Antunes gritou outra ordem:

- ENTRA!!

Dagmar tremeu. As pernas bambas e um arrepio na nuca. Era Jumé gritando dentro de sua cabeça: "VIRA!" e ela virou. Ágil, deixou a caixa cair e fugiu dos constantes pesadelos que ocupavam suas madrugadas. Ao se ver na rua, parou, respiração pesada e coração disparado. Limpou uma sujeita imaginária na roupa e então percebeu que por debaixo de suas vestes, entre as coxas, suas intimidades babavam. Jumé repetindo ordens em sua mente e a jovem Dagmar lá longe, bem distante no tempo, obedecendo. Amadureceu com essas lembranças e noite após noite jamais ousara desobedecer. Fazia tudo que Jumé ordenava. Pavor que o marido, qualquer pessoa, percebesse o quanto ela gostava de obedecer, de fazer tudo que lhe era ordenado, se ao menos Ernesto pedisse alguma coisa. Marido imprestável, vida besta... Dagmar parou. Não podia fugir. Precisava enfrentar Jumé. Ainda indecisa, caminhando lentamente, passo sobre passo, voltou rumo ao escritório do Antunes. A única certeza é que precisava encarar o demônio.

(continua...)