CONTO PERVERSO DE ANIMAIS
Creso Abreu
 
 

Seu nome ficou sendo Jonas, igual ao do ventre da baleia, e isto fora coisa de seu pai (aquele canalha bêbado), que lá um dia teve obsessões de nome bíblico. Saíra do armazém e foi gastar a tarde de domingo num boteco, discutir o campeonato com um polícia à paisana.

Soldado convertido aos caminhos do Senhor (mas bebia), ele gritava para o boteco inteiro ouvir, com a boca espumando Davi, Golias, sarças ardentes, a vitória dos simples. Esbugalhava os olhos quando falava em Jonas, na baleia e que tais. Ficaram amigos. O velho passou a tomar umas e outras de vez em quando com o soldado profeta.

Bebiam muito. Corria que o pai de Jonas estava de olho na mulher do soldado. Mas eram bons camaradas. Num dia em que o seu time perdeu, o pai passou da conta nas pingas, ficou com vontade de vomitar, sempre ficava assim quando misturava as bebidas, diabos, pior que sua mulher, grávida, estava parecendo uma jaca, aquela vaca. Chegou em casa de pileque.

- Quero jantar.

Barriga pela boca, de oito meses, ela estava mesmo muito lenta, triste e flácida, como as vacas e as jacas.

- Tá na mesa. E você ficou de escolher o nome do menino.

- Já disse que quando nascer coloco o nome.

- Queria saber logo. Pra ele nascer com nome. Pra bordar o nome nas roupinhas.

Olhou para a mulher. Enorme e ao mesmo tempo baixinha. Cachalote gestacional. A vontade de vomitar voltou. Queria dormir logo.

- Põe o nome de Jonas. Jonas tá bom. O soldado disse lá no bar que foi um cara aí que uma baleia engoliu. E que no final se salvou, e que era um cara iluminado, ora pombas. A mulher ouviu sem entender. Mas o bebê Jonas nasceu, trinta dias depois. O soldado e a mulher (morena) foram os padrinhos de batismo.

Jonas cresceu rápido, cresceu apanhando. Apanhava Jonas e também a mãe, quando o pai (canalha!) bebia. Bebia junto com o soldado. Soldado que era do bem, quase não perdia as preleções na Igreja. Mas gostava de ir para umas farras com o pai de Jonas. E que andava cismado com a sua mulher morena. Cismas de soldado.

A mãe de Jonas não quis engravidar mais. Filho único, levava sova do pai e buscava a mãe para se proteger. Um dia, aos dezesseis anos, a mente atulhada de pensamentos de coisas de mulher, acabou engolindo o medo pra ter uma conversa com o pai. Tomou fôlego. Não podia agüentar mais. Não agüentava mais o pecado.

- É o chamado do Senhor, pai. É o chamado para mim. Quero me converter.

- Quero lá saber disto, você tá é maluco. Tá cheio de minhoca na cabeça, moleque. Vai entrar numa porcaria que só tem sacana. Só tem ladrão.

- É o meu caminho, pai.

- Teu caminho que nada. Tu tá é cheio de minhoca na cabeça.

O pai ainda ficou pensativo por uns dias. Até parou de beber. As coisas iam razoáveis no armazém. Diziam até que ele se encontrava com a mulher do amigo soldado. Já a esposa não era muito exigente. Só queria que ele não batesse em Jonas. Às vezes ela também apanhava. Sozinha.

Tudo bem, se aquele idiota queria se converter, o problema era dele. Mas duraram pouco as reflexões sobre a estrada de Damasco do filho. O pai de Jonas muito cedo voltou a beber cachaça, e a ter vontade de vomitar.

- Ô pirralho, vem cá. Vai comprar cerveja.

Jonas, o da Bíblia, era contra cigarro, bebida, palavrão, falar mal do povo, jogo de azar, futebol e mulher gostosa. Mas não gostava de ser chamado de pirralho. E o pai gostava de provocar. Obrigava o garoto franzino a ir comprar cachaça e cigarro. Mostrava foto de mulher nua. Ele chorava, chorava baixinho e escondido.

Tarde da noite, pedira pra ele ir buscar um maço de cigarros na casa do soldado. Jonas não quis ir, fez cara de choro.

- Obedeça a seu pai, moleque.

- Não vou, meu pai.

- Obedeça a seu pai, moleque, senão te cubro de porrada.

Não foi, e tomou porrada mesmo. O velho era forte, não dava pra revidar. A mãe gritou, não adiantou, levou uns tapas também. Os vizinhos ouviam tudo. Diziam que não entendiam, um menino tão calmo, até crente era. Não merecia nada daquilo.

Cheio de dores do corpo e da alma, Jonas fez concurso e ingressou no serviço público, aos dezoito anos. Emprego no hospital. Emergência. Quando o pai descobriu que o filho era maqueiro, fez troça.

- Motorista de defunto.

No trabalho, Jonas era dedicado. Pregava os ensinamentos do Senhor. Atuava no bloco cirúrgico. Pregava. Não demorou para se tornar conhecido.

- Ô Irmão do Bloco. Vai lá na Emergência, que o bicho tá pegando.

Emergência. Tiro, facada, hemorragia, álcool, traição, infecção, desespero, choro e ranger de dentes. Vinte e quatro horas. Lá um dia, Jonas, o Irmão do Bloco, agachou-se pra consertar a rodinha quebrada de uma maca, e o que estava doente em cima da maca vomitou (sangue) na boca do Irmão. Ele vomitou também, e lá se foi a prótese dentária, no chão do Ex-INAMPS.

A coisa virou pilhéria, da boa, no hospital. O pai soube e gargalhou como nunca.

- Tu é um otário mesmo.

Belo dia que veio e Jonas, de prótese lavada, terminou o expediente mais cedo. A mãe estava fora, nas compras. O pai, que surpresa, estava em casa. Jonas o encontrou no quarto. Sem roupa. Com o soldado de polícia. Sem farda.

Pegou mal, muito mal. O Irmão do Bloco esqueceu tudo o que ouvira para se converter aos caminhos do Salvador. O berro trinta e oito do soldado estava pendurado na porta do quarto. Jonas descarregou o tambor nos dois.

Ficaram lá, com os olhos esbugalhados, inertes, carnes moles, vacas mortas, jacas flácidas. Estrebucharam. Cheios de sangue, pelados, horrendos. Por cima da cama, pelo chão, pelas paredes, por cima um do outro.

A mãe abriu caminho entre os vizinhos. Rosto patético de dor das mães traídas.

- Meu filho. Pelo amor de Deus.

- Foi o chamado, mãe. Foi o chamado do Senhor para o meu pai.

Disse isto, e aí choraram. Urraram. Os vizinhos pareciam se deleitar com o choro da mãe do assassino. Absolutamente plena a dor, momento em que Jonas se virou e viu, viu muito bem que acabara de chegar um meio palmo de coxa morena e linda de mulher, quase sentada ao lado dos corpos. Choro de pequeninas lágrimas, lábios carnudos, pequenos suspiros. Jonas lembrou-se do pai, dos caminhos do Senhor, do vômito, do hospital público.

E manteve os olhos abertos, muito ávidos, para a mulher do soldado morto.