HEURECA!
Doca Ramos Mello
 
 

Acabamos de matar uma jararaca aqui, em casa. Quero dizer, "seu" João, meu involuntário (eu costumo laçá-lo nos momentos de aperto doméstico) assessor para assuntos animais, matou a danada a pedido meu, porque eu mesma tenho calafrios e não consigo tomar atitude alguma numa emergência dessa. Cobra é um animal que me arrepia...

Creio que não era um exemplar totalmente adulto, quem sabe uma quase adolescente, não sei direito, conheço pouco sobre a espécie... Mas fez um calor escaldante hoje, ela deve ter saído para pegar um bronze básico, depois, com certeza, pretendia abrigar-se à sombra úmida das minhas rendas portuguesas, tomar um suquinho gelado, um sorvete... - para trás, satanás!

Ui, nem me lembre dos ecologistas. Eles já não morrem de amores por mim por causa de um entrevero com certas formigas cortadeiras que dizimei aqui em casa, um arranca-rabo com um sapo-martelo e outros pequenos incidentes ambientais, de modo que estou preparada para ser, mais uma vez, verdemente odiada por eles, paciência. Vou fazer o possível também para evitar as recriminações do doutor Osmar, ele era bem capaz de dizer que não, matar jamais, no máximo incentivar o bicho para ir se refestelar noutras plagas, isso aí, vai passear criança, chô, filhinha (o doutor é um sujeito ecológico até as raias da incompreensão).

Não. Não sou inimiga do meio ambiente, mas respeito é bom e eu gosto, o que é que há? Então a jararaca vai entrando, tomando assento, apoitando na minha vivenda e eu não posso me rebelar? Além disso, forçoso esclarecer que uma jararaca não é exatamente um docinho de coco ambiental, sejamos justos, não me restou outra alternativa, ué...

Agora, morte consumada, lamento um pouquinho até e me pego a pensar que ela, na certa deixou família, pai, mãe, irmãos, cunhados, pessoal que deve estar se perguntando o que teria acontecido, fulana foi dar uma voltinha e não voltou mais, já é tarde, ai, não se tem segurança nenhuma hoje em dia, é o PCC... Quem sabe até tivesse um namoradinho, por que não? Cobra, todo mundo sabe, é um bicho erótico demais, adora se enrolar pelos matos sem a menor prevenção, depois nasce uma pá de cobrinhas que rodam o mundo e ainda querem viver no jardim das pessoas, eu, heim, que irresponsabilidade...

Sei que por uns dias vou ver o fantasma da jovem jararaca me rondando a consciência, vou me assustar com qualquer folhinha seca levada pelo vento, vou berrar e cair dura para trás a cada comum picada de borrachudo, salvem-me, a jararaca veio cobrar minha dívida! Porém, enfrentarei mais essa crise ecológica com o brio dos fortes, não me deixarei abater - mandei matar, sim, que teria feito você, no meu lugar? Convidaria o bicho para entrar, tomar um guaraná, ouvir o novo cd da Adriana Calcanhoto? Duvido. E quer saber mais? Já mandei matar outras anteriormente, as cobras apreciam este lugar, amam o meu gramado, mas não pretendo deixar que se estabeleçam, nunca. Olhe, eu até tento primeiro afugentá-las, vamos saindo faz favor, essas coisas, mas quando não dá, não dá.

Agora, estou especialmente desconfiada de um pequeno canteiro de flores tropicais que cultivo ao pé de uma palmeira: acho que a jararaca pode ter vindo dali e assim, meu dilema presente consiste em arrancar ou não aquelas flores.

Será que há parentes da falecida ali, esperando que eu relaxe na vigilância para se vingarem de mim?

Saberão que mandei executar-lhes a pedrada o membro adolescente do clã?

Estarão conspirando contra mim?

Vai ver já organizaram uma reunião do sindicato e definiram que agi por puro e nojento preconceito contra as cobras, elas se dizem vítimas atrozes de perseguições e matanças inescrupulosas graças ao que classificam como "um equívoco bíblico" (fizeram movimentos com a finalidade de mudar o enredo do pecado original, detestam Adão e Eva, exigem ser tratadas por ofídios, consideram a palavra cobra politicamente incorreta, etc.). E preconceito é crime previsto por lei, oh, céus! Haverá uma Afonso Arinos ofídica, com a qual possam pedir a minha prisão preventiva (eu, na cela com Fernandinho Beira-mar, Santa Bárbara!) ou milhões de dólares para ressarcimento dos danos morais sofridos, afinal pode ter sido a perda de uma trabalhadora, cujo potencial econômico será avaliado em outros tantos milhões de dólares?! A família da cobra falecida pode vir a pedir indenização ou anistia assim que nem o Genoino?!!

Tenho uma idéia.

Se as parentas da jararaca aparecerem por aqui, vou chamá-las para um diálogo franco e farei com que vejam que eu também tenho problemas enormes com outros bichos, que a minha vida também é boicotada por preconceitos e, assim, mostro que seria muito mais vantajoso para todos se nos aliássemos, formássemos uma ampla frente animal diversificada para, juntas, tomarmos conta de tudo aquilo que nos pertence na natureza e nos adonarmos destas terras... Chamo o Wagner Tiso, o Paulo Betti, o Gil... Ensaio um tipo paz e amor, convido as companheiras jararacas para somar esforços comigo, vamos defender o meio ambiente, a saúde, o emprego e a educação dos animais, falo mal da Zelite, organizo o qualquer-coisa-zero, digo umas besteiras e mando bala.

Depois, é simples, sigo minha carreira. Sou eleita presidente dos animais, deixo minha turma roubar todo o reino animal e ainda acabo com as jararacas todas.