JAVALI
Maria Luísa Rocha
 
 

O homem era gordinho, branco, de olhos azuis. Entrou no prédio, batendo o portão da rua com toda a força. Parece que isto ocorria habitualmente, sempre que ele saía ou chegava a casa. Morava sozinho desde que sua tia falecera, após uma sofrida agonia em um hospital, vítima de uma degeneração senil. Nunca fora ao hospital fazer-lhe uma visita porque achava isto uma coisa deveras chata. E anti-higiênica. Para ele, a morte da tia fora o maior presente do mundo, tanto que, no dia seguinte ao enterro, resolvera dar uma festinha íntima pra comemorar a independência. As garrafas de cerveja iam sendo consumidas rapidamente por uma turma de uns quinze jovens, todos falando alto, rindo, arrastando móveis, mexendo no aparelho de som para trocar de música incessantemente. Interessante como eram inquietos, não gostavam de ouvir uma música até o final. Tudo muito frenético. Dancing nights! Absolutamente importavam-se com os moradores dos outros apartamentos. Para que isto? Quem iria fazer alguma coisa? A Prefeitura? Todo barnabé dorme à noite, coitados, trabalham tanto... A Polícia poderia até aparecer e fazer um boletim de ocorrência, mas e daí? Nada mudaria o cenário festivo e ninguém o impediria de festejar acontecimentos mil. Aliás, tudo era motivo: a morte da tia, o presente da namorada do mês (seus namoricos duravam em média um mês, que era o tempo suficiente pra ele se cansar das garotas e dar-lhes uns bons tabefes na cara e elas saírem chorando e gritando pelas escadas do prédio, as histéricas), a vitória do seu time de futebol, o aniversário do amigo, a comemoração da surra que dera no colega de sala (o bonitinho freqüentava a faculdade de educação física).

Mas, voltando ao frigir dos ovos - como diria a dona Chiquinha, filósofa e letrada senhora que vivera neste prédio em tempos outrora respeitáveis - o opulento cidadão adorava comemorações. Era de uma alegria ensurdecedora, movida por químicos diversos e pelo álcool e também por uma necessidade freudiana de estar sempre cercado de gente. Claro que ele agradava a todos: fazia jantares como macarronada e carne frita, o cheiro e a fumaça atravessando não só as janelas do seu apartamento, mas indo ajudar a acordar os vizinhos dos outros prédios com um odor, a princípio irresistível, mas que rapidamente se transformava em cheiro de sola queimada. Certa madrugada, a fumaça fora tanta que a vizinha do terceiro andar, apavorada, chamou o Corpo de Bombeiros. Demoraram uns quinze minutos pra chegar, sirenes na maior altura. Desta vez todo o quarteirão acordou, era uma terça-feira. Foi advertido severamente mas isto tornou-se um ótimo motivo para, durante o resto da semana, encontrar-se com os amigos e comemorarem juntos o incêndio que não aconteceu. Gente chegando e saindo para ouvir a tremenda estória de como os heróis do fogo chegaram rapidinho. Ah... foram muitas gargalhadas pelas noites adentro.. Os vizinhos reclamaram que não conseguiram dormir nadinha, todos acordando às seis, sete horas pra trabalhar e estudar - pobres diabos - cansados da semana insone. O bonitão não trabalhava, claro, era filho de rico, parece que de um advogado famoso do interior que lhe mandava dinheiro à vontade. Saía somente para estudar à noite e voltar com amigos e namoradas, um desfile interminável de pessoas estranhas e inquietas, bebendo e rindo, gargalhando e dançando.

Um belo dia, à tardinha, a menina do andar de baixo , uma criança tímida de uns nove anos, chamada Manuela, estava estudando no seu quarto, que ficava exatamente embaixo do quarto do alegre rapaz. Estava lendo um livro de estórias macabras, de fantasmas e monstros, muitíssimo concentrada. De repente, ouviu as pesadas passadas que invadiram o quarto de cima. E ela soube exatamente do que se tratava. E gritou: Mãe, tem um javali aqui em cima... Socorro!!!