VELÓRIO E ENTERRO DO PEQUENINO PEDRO
Zeca São Bernardo
 
 

Nilda pouco entendera do que a filha mais velha balbuciara no telefone minutos antes...todavia, pareceu-lhe claro tratar-se de notícias graves envolvendo o velório e enterro de alguém! Ás pressas cerrou as portas de aço de sua pequena oficina de costura e correu para casa esbaforida. Ignorando que podia fazê-lo sem tanta pressa, uma vez que morava do outro lado da rua mas, essas coisas são sempre assim! Perde-se o sentido da razoabilidade, abandona-se o trabalho ás pressas e põe- se em franca marcha para ver do que se trata e o que pode ser feito para ajudar.

Com impaciência esperou o elevador por quase dez minutos e determinada seguiu pelas escadas até o décimo terceiro andar. Não admitia deixar as meninas sozinhas com tamanho fardo, degrau á degrau lembrou-se da mãe doente no interior ou do pai cardíaco que tratava-se no Hospital das Clínicas e somaram-se orações á mais degraus. Ao ponto de não distinguir mais se rezara tantos quantos degraus subira ou se subira mais degraus do que orações dedicara ao Senhor.

Tocou a campanhia e depois constatou que a porta estava só encostada, esbaforida e sem fôlego olhou ao redor do diminuto apartamento e viu as janelas lacradas, as meninas reunidas em torno da mesa da sala vestidas de preto, o "caixão"sobre a mesa e as quatro velas acesas duas a duas. Um par na altura da cabeça e outro na "altura"dos pés. No sofá o filho mais velho sentado com cara de deboche segurando o riso e com os olhos fitos no relógio sobre a estante, francamente preocupado com o horário do jogo do Corinthians.

Não pode acreditar no que via e aproximou-se. Olhou o defunto e primeiro teve certeza que a raiva tomaria-lhe e que acabaria com aquela palhaçada na hora! Mas com os prantos convulsos das filhas chegando a seus ouvidos seu coração condoeu-se e lembrou-se de quando despediu-se de Diana para sempre. Noutra tarde de domingo há muitos anos atrás...

Deixou que as meninas se aninhassem em seu colo de mãe e procurou entender alguma coisa sobre o passamento do pequenino Pedro. Colocando em relativa ordem os fatos pelo que conseguia entender: fora encontrado morto pela manhã pela filha do meio! Que tentou ressuscita-lo recorrendo até á respiração boca á boca - mais tarde pensaria na nobreza deste esforço louvável, quando o estomago não mais revirasse a mera lembrança do fato passado!- e que esgotada todas as possibilidades levaram-no já morto ao médico que analisou-o entre um sorriso e outro decretando que nada podia ser feito!

"Ele nem o tocou- garantiu-lhe uma das meninas , obviamente, indignadas com a falta de sensibilidade do profissional em questão- e ainda sugeriu que o deixássemos lá para ser recolhido ao lixo mais tarde".

Sim, pensou Nilda igualmente indignada e já com as lágrimas rolando pelas faces e não lutando mais para esconde-las, nunca mais elas terão a mesma idade. Ás coisas vão mudando, ás pessoas vão mudando conforme vão crescendo e algumas coisas precisam ficar para trás.

Mas aquela tarde não!- determinou, deixaria-lhes prantear e enterrar o pequenino Pedro.

Quando deu ás costas para o defunto para ver que entrava deu de cara com o pastor de sua igreja, homem tido como sério e grave! De sermão duro contra as fraquezas da carne e do coração dos homens. Cujos sermões igualmente duros levavam ás lágrimas os irmãos e irmãs que teimavam em permanecer no caminho do mal e das trevas.

Chamado as pressas, não teve tempo nem de dar nó na gravata, cansado da vigília que encerrara-se aquela manhã correu para atender a emergência. Os olhos vermelhos injetados, a boca seca, o suor que quedava-se ao solo qual águas de cachoeira livre denunciavam que o maldito elevador continuava quebrado.

Conhecedora da fama do homem de Deus e douta sabedora de seus sermões esperou pelo pior! Pelo berro seco e alto que abalaria as estruturas do próprio prédio. Porém, tomando uma das cadeiras e secando as faces com a manga do terno o homem pôs-se a procurar um ou dois trechos selecionados em sua bíblia e dispôs-se a oficiar o enterro do pequenino. Enquanto serviam- lhe um copo d'água.

"Ai já é demais"- sentenciou Gabriel, o filho mais velho, enquanto deixava o sofá e precipitava-se porta a fora pensando na casa de qual amigo assistiria ao tão ansiado jogo.

Ás quinze para ás quatro o cortejo fúnebre seguiu da minúscula sala até o banheiro, cinco ou seis crianças fora os filhos da costureira acompanharam o fétedro até o vaso de porcelana e assistiram- emocionadas e aos berros- a caixa de fósforo ser fechada e o "caixão"ser lançado ás águas "santas e puras" , segundo o pastor e "como quis Deus chegar até o rio e do rio chegar até o mar e do mar para ás glórias do Céu" e, complementou, "que o Senhor nos perdoe se cometemos aqui algum pecado ou desvio de Sua Santa Palavra". Mas acreditava que não, pois no livro santo era incontável o número de vezes que os peixes eram citados . Sendo, entre tantas outras coisas, criaturas do Senhor!

Viera, marido de Nilda, prostado ficou no sofá "bebendo o defunto". Com largos e gêneros goles de cachaça...vá lá que tudo servia-lhe de desculpa para embebedar-se, mas daí a servir-se ou aproveitar-se do velório e enterro do peixinho dorado de aquário revirou o estomago de sua senhora e gerou uma crise posterior que quase levaram-lhes a beira do divorcio.

Do mesmo jeito que chegou, apressado, o pastor partiu. Sem falar com ninguém, tenso, preocupado e agora com as lembranças do velho gato Veludo seu primeiro "amigo de verdade"costumava dizer aos dez anos e o primeiro animal ao qual oficiou um enterro. Ainda como leigo, certamente abençoado.

Já esse modesto ajuntador de letras não teve como fugir a este compromisso e levar seu filho o pequeno Pedro, xará do pobre peixe falecido que, alias, fora "batizado"- com direito a uma pequena festa com bolo e tudo!- semanas antes com o mesmo nome do meu menino e em sua homenagem. Pois as meninas achavam á ambos muito bonitinhos...