DE NORTE A SUL
Adão Jorge dos Santos
 
 

O meu trabalho fica do outro lado da cidade. Moro na zona sul e trabalho na zona norte. De segunda a Sábado embargo no ônibus T4, transversal 4, que atravessa a cidade de lado a lado. O percurso leva aproximadamente uma hora e 10 minutos. Os passageiros são quase sempre os mesmos. A conversa é generalizada e o burburinho é ensurdecedor. Mesmo assim alguns conseguem dormir parte da viagem.

Eu me acomodo bem no fundo do veiculo. Ali não ninguém me aperta. É a parte alta do transporte, ali eu permaneço ate o fim da viagem. mesmo que eu quisesse dormir não conseguiria, é muito solavanco e as pessoas sobem em todos os pontos. Estou lendo Iracema, de José de Alencar, A virgem dos lábios de mel. E logo ali, bem na minha frente, vejo minha Iracema, não a do livro, mas a bela estudante que tem os cabelos negros coma a asa da graúna , não sei se ela ainda é virgem ou se seus lábios são realmente de mel. Gostaria de descobrir, mas sei que ela é noiva, usa uma aliança na mão direita. Embora isto possa ser um artifício para afastar os paqueradores de plantão.

A leitura é algo surpreendente. É comum identificar personagens andando ao meu lado, vivendo a mesma triste vida que tenho, alguns sei que foram inventados, mas creio que alguns foram capturados pelo olhar aguçado dos escritores. Eu não sei se seria modelo para algum personagem. Talvez me identificasse junto aos Miseráveis de Vitor Hugo, ou então entre os prisioneiros do Navio Negreiro de Castro Alves. Outro dia quando lia Dom Casmurro, de Machado de Assis, descobri os olhos de ressaca de Capitu em uma bela mulher acompanhada de seu pretenso amor. Cedo ou tarde, a gente percebe, ele vai suspeitar de que ela o traia com alguém. Enquanto segue a viagem com suas características próprias , começo a exercitar minha imaginação, se de repente assaltassem a gente, ou caíssemos num barranco, ou capotássemos numa curva acentuada, o mais provável que pode acontecer é a gente cair num dos tantos buracos da estrada, ai sim haveria alguma aventura para quebrar a rotina desta monótona viagem.

O que acontece mesmo de interessante nesta viagem é os causos que escuto, são tantos que Simões Lopes Neto cansaria de tanto escrever. E personagem para o negro Bonifácio aqui dentro não falta. Um começa a contar que viu a mulher de um amigo saindo de um Motel, e que não sabe se conta ou não, começa então um bate boca entre os que são a favor e os que são contra. Fala-se de política, de esporte, da vida alheia, de tudo um pouco.

No caminho passo por tudo quanto é lugar. Passo por postes, por praças, por muros, por cercas,por Super, por Mercado, passo pela rua da minha infância, pelo o estádio do meu clube, por uma Ambulância gritando, por carros apressados, por curvas acentuadas, por prédios abandonados, por ruas sem saída, passo por gente, passo por bicho, passo pela casa dos meus sonhos, passa passa tanta coisa, e é tanta coisa que passa, que se eu não me cuidar, eu é que passo do ponto.