DISSOLUÇÃO DE UM SENTIMENTO FERIDO
Ly Sabas e Osvaldo Pastorelli
 
 

Rosymary estava cansada depois de seis longas horas aprisionada dentro do ônibus. Seus olhos, de um preto mais para claro, ardiam devido à noite insone e às luzes que passavam velozes na monótona paisagem escura. Consultou o relógio pela milionésima vez e constatou surpresa que dali a cinco minutos estaria na rodoviária. Por isso, jogou o cansaço todo na poltrona fechando os olhos. Ao descer do ônibus sua mente abrangeu rostos apressados e nervosos. Caminhou segura, com passos marcantes bem femininos, por entre a multidão até o local que sempre combinava esperar por Lucas. E nesse simples deslocar, via os longos minutos de sua vida escoarem-se como água caindo do chuveiro. Impaciente tentou o celular novamente pela quarta vez, mas nada, caixa postal. “Que droga”, gritou em pensamento. Onde ele estaria? Teria recebido o seu torpedo? Não entendia o porquê de deixar o celular desligado. Não queria falar com ela? Já teria ele decidido tal coisa? Impossível! Assim mesmo, tentou ainda mais umas duas vezes. Caixa postal. Contendo a raiva que roía seus sentimentos, procurou a mesa do encontro com os olhos marejados pela saudade aflita e jogou-se na cadeira, num modo desleixado que não era de seu feitio.

Acendeu um cigarro, deu duas tragadas rápidas e apagou no cinzeiro. Apoiou os cotovelos na mesa e afundou o rosto nas mãos. Estava muito cansada, seu raciocínio tornava-se lento. Mesmo depois das férias forçadas que se haviam dado, reconhecia que Lucas não estava nem um pouco preocupado em mudar nada. A última conversa que tiveram fora desgastante, muitas coisas foram ditas, mas nem todas as verdades de seus sentimentos. Essas Rosymary sabia, jamais seriam ditas ou esbravejadas, pelo menos não do jeito que ela fazia em sonhos. Neles era capaz de chamá-lo de cafajeste e outras baixarias. E mandava às favas sua formação rígida, que a forçava a ser educada mesmo em situações críticas como a que estavam vivendo.

O movimento da rodoviária em véspera de feriado começou a afetar sua segurança e resolveu beber algo para relaxar. Enquanto bebia tentou falar com Lucas mais algumas vezes e acabou chegando à conclusão que teria que pedir muitos outros “algo”. Diante dessa horrível perspectiva, forçou o pensamento para fora de si. Escorregou o olhar em volta caindo novamente no meio da agitação em que vinha se desorganizando por causa dele. Dele! Porque se preocupar com Lucas e como ele permitira que ela ficasse assim, melindrosamente em perigo? Ela também tinha uma parte de culpa no processo. Frustrada, catou as preocupações colocando uma a uma em sua caixa de desafetos, organizando-as para depois, no sossego do ódio apaziguado, conforme fosse apropriado, resolvê-las de uma vez só.

Tinha consciência de que talvez jamais acontecesse isso. Há anos, tantos que já nem sabia quantos, vinha acumulando-os, bem trancafiados, até que se tornavam ridículos diante de seu raciocínio lógico e saíam da caixa por si só. Agiam como seres vivos e independentes que saem de nossas vidas sem ao menos dizerem: “Cansei, fui!” Sabia que sem ajuda não resolveria o caos em que se transformara sua vida sentimental. Mas tinha orgulho e vergonha demais para isso. Como reconhecer, mesmo que para um terapeuta, um estranho, ser uma profissional segura e bem sucedida que não conseguia gerir sua vida pessoal? Que não tinha coragem para pensar, quanto mais falar: “Eu fracassei”?! Para ser sincera, ainda não considerava que houvesse fracassado totalmente. O erro não fora tão somente dela, Lucas também tinha a sua cota e ainda não haviam colocado um ponto final na relação, por mais conturbada que estivesse.

Olhou o relógio, pegou o celular, tentaria a ultima vez. Não melhor, não. Já não sabia se queria falar com ele. Não naquele momento em que estava tão confusa. Resolveu ir embora, mas antes de qualquer movimento, o aparelho começou a tocar. Era Lucas. Melhor não atender, não queria atender, não deveria, sabia disso, mas sem notar já estava falando. De imediato não ouviu o que ele dizia, seu coração pulsava forte, doendo no peito. Forçou a mente a abrir e ouvir o que ele tinha para lhe dizer. Que cara-de-pau, além de dizer que não poderia ir buscá-la, depois de mais de uma hora esperando por ele, ainda diz que está com Alfredo que, cheio de problemas, precisava de companhia e conselhos de um amigo. Como sempre apelava vergonhosamente, já que sabia que ela dava valor a esse tipo de situação. Depois de algumas desculpas do tipo “você sabe que eu não faria isso à-toa” acabou sendo envolvida pela emoção e aceitando o convite para almoçar na casa dele. Ao mesmo tempo em que aceitou, sentiu-se encabulada por não haver recusado. Agora ficaria com aquela sensação desagradável, torcendo para que alguma coisa acontecesse impedindo-a de ir.

Terminou a bebida, pagou e caminhou até o ponto de táxi. Não gostou da cara do motorista, teria preferido ir no carro seguinte, mas era obrigada a seguir a ordem dos carros. Acomodou-se no banco dando o endereço de casa. Precisava tomar um banho depois de passar a noite toda no ônibus e parte da manhã sentada na rodoviária. Melhor nem lembrar desses detalhes. Embora tivesse aceitado o convite e fingido desculpar Lucas, qualquer motivo serviria de estopim para a bomba em que haviam se transformado suas frustrações. Examinou a cara do motorista pelo espelho e descobriu o porquê de seu desconforto. Ele lembrava outro caso antigo. Por alguns minutos fantasiou que parava o carro, pedia satisfações e depois implorava para reatar Ela então gritava todos os impropérios que estavam amordaçados em sua caixa. Levou um susto quando o carro realmente parou diante do prédio.

Rosymary subiu a pequena escada estreita quase arrastando a mala e praguejando mentalmente. Abriu a porta do apartamento, jogou a bolsa no sofá, chutou a mala com raiva até o quarto, despiu-se enquanto ouvia os recados na secretária eletrônica e abriu a torneira do chuveiro. Testou a temperatura com o pé e depois em movimentos lânguidos deixou a água molhar o pensamento físico relaxando os nervos. Aproveitou a tranqüilidade a envolver sua pele interior examinando a silhueta no espelho grande atrás da porta. Aos poucos sua figura foi sumindo devido ao vapor da água quente. Sorriu meio forçado, sem vontade até. Não porque achou engraçado, mas por ver-se sumindo junto com o reflexo, diluindo-se dentro do vapor.

Segundos depois não havia mais nada dela; apenas a água caindo do chuveiro e escorrendo pelo ralo, e o sabonete abandonado no chão do box.

 
 
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