A HORA E A VEZ DE CARMINHA OU DO LIXO AO LUXO
Maria Luísa Rocha
 
 

A semana começou bem diferente do usual: Maria das Graças precisou ir ainda cedo ao bairro vizinho pra devolver um guarda-chuva que Seu Zé, o barbeiro, havia emprestado ao seu marido quando a chuva o pegou a caminho de casa, na sexta-feira, voltando do trabalho. Gracinha, como era conhecida, ficou aborrecida com o imprevisto. As tarefas domésticas que realizava de manhã ficariam atrasadas e teria que correr durante o resto do dia. Que amolação! Foi com este estado de espírito que atravessou a imensa avenida que a levaria à barbearia. Quando chegou ao outro lado, afobada e respirando a fumaçada daquele mar raivoso de carros e ônibus, deparou-se com um amontoado preto, encostado na grade de uma locadora de carros, exatamente na esquina. Percebeu que se tratava de um cãozinho e seu coração se apertou. Meu Deus do Céu1 Que magreza e que sujeira! Mas prontamente se refez, endurecendo-se, e prosseguiu até o seu objetivo. Entregou o guarda-chuva e, aliviada, voltou, refazendo na cabeça o que deveria realizar com prioridade: lavar as verduras, cozinhar o feijão, por a roupa suja na máquina de lavar. E deixou escapar para si mesma: “Tomara que aquele cachorro fedido, cheirando a carniça, já tenha se levantado e ido embora”. O que os olhos não vêem, o coração não sente. Pensou em dar uma volta, evitando o caminho que percorrera, mas demoraria muito mais. Apressou-se e chegou à esquina. Lá estava o pobrezinho. Desta vez, pra complicar, o animal levantou-se e quase caiu, pois uma pata da frente estava inerte, prejudicando o equilíbrio. Maria das Graças irritou-se e pensou que isto não era verdade. Não podia estar acontecendo com ela. Quis matar o marido que a fizera estar ali. Se estivesse em casa, lavando, passando e cozinhando, nada disto estaria acontecendo com seu coração. Passou direto, pisando duro. Não olhou pra trás. Chegando em casa, não conseguiu se concentrar: queimou o feijão. Chorou um pouquinho, ligou para uma amiga tentando um consolo e ouviu o que não queria. O dia foi passando e Gracinha lembrou que precisava voltar urgente à avenida fatídica. A chave do portão do prédio estava estragada e precisava urgente de fazer uma cópia na loja que ficava naquele local. Já passava das cinco quando chegou de novo à avenida. E pensou que provavelmente não mais iria ver o embolado pretinho do outro lado, um monte de miséria e dor. Seu coração apertou-se e doeu de verdade. Finalmente, tomara uma decisão: se estivesse lá, não tinha mais como escapar: iria recolher o pequeno ser. Ponto final. Fez a cópia da chave e olhou. E atravessou novamente aquele mar feroz de latas, como um Moisés de saias, pronta pra salvação. Pediu ajuda a um vigia, colocaram o animalzinho desanimado dentro de uma caixa e dirigiu-se a uma clínica veterinária perto dali. O nojo era muito. A veterinária examinou a pata, suspeitou de fratura por atropelamento ou quem sabe, espancamento. Maria das Graças lembrou que perto de onde apanhara o animalzinho havia uma escola da favela e as pobres criancinhas do grupo sempre passavam alegres, jogando pedras e chutando tudo que encontravam. Gracinha pensou em um banho e falou: “ eu pago o que for preciso. Quero ver este animal limpo”. A veterinária concordou e cobrou-lhe o batismo: “Como ela vai se chamar?” Ah, que coisa difícil! Pensou e pensou. E veio a ajuda: “Onde você a encontrou?” Na av. Nossa Senhora do Carmo.”Ah, já sei, Ela vai se chamar Carminha”.

Os meses se passaram. Carminha transformou-se, qual uma cinderela, em uma simpática cadelinha de pelo rebelde e brilhante, meiga e dócil, a patinha totalmente recuperada, os ossos cobertos por massa muscular obtida com excelente ração. Era a alegria da clínica. Agora só faltava um lar, um dono. Maria das Graças ia visitá-la uma vez por semana, pagava as diárias com o dinheiro que seria de compras que iam sendo adiadas. Alguém iria aparecer, mas Gracinha não queria qualquer pessoa, teria que ser o melhor dono do mundo: Carminha já havia conquistado seu coração. Um certo dia, uma lindo modelo apareceu na clínica, foi levar o gatinho pra tomar vacina. Apaixonou-se perdidamente por Carminha e disse: ”Ela é minha alma gêmea. Vou levá-la comigo”. Maria das Graças encantou-se com a moça, conheceu seu coração bondoso e decidiu que ela seria sua mãe adotiva: “CARMINHA, prepare-se porque você vai fazer uma longa viagem, de avião, para sua nova casa, em Miami” . Quem diria, uma vira-latinha tão miserável transformar-se em uma princesa da noite para o dia.

E, comovida, Maria das Graças entendeu: a madrinha de Carminha era a mais poderosa fada que existe nesta terra, era Nossa Senhora que sempre protege seus filhos desamparados.