VORACIDADE
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães
 
 

a pressão sangüínea, bombeada nos tubos, subiu violentamente e o coração acelerou ao máximo como um carro que disputasse uma prova. já havia acontecido outras vezes e ele, suando frio, procedeu como lhe fora recomendado pelo seu médico particular: enfiou um comprimido embaixo da língua, afrouxou a gravata, sentou-se e tentou relaxar. J. Cardia era o seu nome. que ironia. cinqüenta anos. fumante, obeso e sedentário.

e um conselho: evite emoções fortes. emoções? logo ele que sempre fora frio e calculista, prático e racional, que tinha na ponta dos dedos o toque de midas para as finanças e não entendia bulhufas de emoções. logo ele para quem, por exemplo, o grande momento do futebol, o gol, que fazia delirar as massas apaixonadas, era apenas um objetivo, uma meta a ser atingida; logo ele para quem o sorriso de uma criança era apenas algo a ser explorado em uma campanha de lançamento de um produto ou serviço; logo ele para quem os relacionamentos, seus casamentos, eram apenas compromissos sociais, meios necessários aos fins que se propunha atingir; logo ele para quem sexo era apenas uma forma paga de aliviar tensões e purgar o instinto primitivo de copular; para quem as amizades eram apenas redes de relacionamento que se podia tecer ou desfazer dependendo dos interesses em jogo.

alguém filosofou que as emoções tem origem na paixão. paixão. ele não lembrava nunca de ter usado esta palavra. tesão, sim, usara muitas vezes, mas de forma incorreta, inadequada ou figurada. paixão, nunca. o fogo da paixão era figura de uma linguagem que ele jamais fora capaz de entender. achava os seres humanos muito complicados, poços de contradições, carentes de aceitação. e era aí que ele se concentrava em garimpar suas oportunidades, levar vantagem, ganhar dinheiro.

paixão.

a mulher com quem raras vezes compartilhava o leito era uma pessoa fútil, escrava branca do consumo, das grifes da moda, que adorava aparecer nas colunas sociais e transar com garotos de programa.

paixão.

o único filho, alguém distante, quase um clone dele próprio, com quem às vezes se comunicava por e-mail ou celular viera planejado.

paixão.

não conseguia explicar por que aquela palavra tola o fustigava. seria algo semelhante ao que sentira minutos antes? algo que nos aproxima da face oculta da morte?

irritou-se por achar que estava dando muita importância àquilo tudo e, já sentindo-se melhor fisicamente, o coração voltando a bater no ritmo normal embora ainda levemente incomodado, levantou-se e foi ao toalete. no espelho, a sua imagem, face de cera pálida, encarou-o desafiadora e ele vacilou. a questão voltou a perturba-lo e ele repetiu para si mesmo várias vezes que sentimentos, paixões cruéis, arrebatadoras, desenfreadas.... nada tinham a ver consigo. nada.

minutos depois voltou renovado à sala de estar e ela o esperava: era jovem e dona de uma beleza exótica sem artificialidade. antes que ele esboçasse qualquer reação ela sorriu com dentes perfeitos enquanto soltava sobre os ombros nus os longos cabelos negros que estiveram presos em coque; isso conteve-lhe o ímpeto natural de predador acuado. e graciosa começou a movimentar sensualmente os quadris, o ventre, os braços e dedos cheios de anéis como que regida pelas notas suaves de uma música inaudível, e se despiu totalmente . ele bem que tentou agir com a naturalidade que a experiência de vida dá mas algo que ele não soube explicar o impediu.

então, desferindo um bote fatal do qual ele não pode se esquivar, ela enlaçou-o, enroscou-se inteira nele e o devorou com voracidade.