QUEM NÃO DEVE...
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães
 
 

"Quem não deve, não teme!", forçou a barra o delegado que o interrogava. Ele não devia, mas incomodava-o profundamente o fato de ser arrolado como testemunha naquele caso de flagrante de adultério. Era recepcionista e não podia negar o fato de que realmente sabia, por ter a responsabilidade de checar a documentação dos clientes e anotar a placa dos veículos, quem entrava e quem saía do motel Luna Caliente. E justamente por isso sabia manter-se de bico calado com o mesmo zelo de quem guarda segredos de confessionário ou de divã de psicanalista.

"Relaxe, garoto!", aconselhou delegado sem deixar de botar pressão. E ele, cansado daquele contrangimento todo, resolveu falar, contar tudo:

"Lembro sim, doutor. Por volta de dez e meia da noite de ontem, na pajero cinza, Ele e a garota loira..."

O escrivão, hábil na Remmington, registrava tudo.

"Idade para ser filha dele."

"Basta", interrompeu o delegado. "É o suficiente. Pode ir, está dispensado."

Ele saiu. Lá fora os repórteres todos o esperavam com a mesma pergunta. Ele lhes deu as mesmas respostas.

Aquela noite, quase madrugada, sozinho na paz do turno na recepção do Luna Caliente, questionou-se se fizera bem em dar aquela declaração definida como bombástica pela imprensa local. Achou que pudesse lhe custar o emprego, mas até aquela hora o patrão não o havia chamado ainda para uma conversa. Como quem não deve, não teme... convenceu-se finalmente de que não tivera outra saída e que se houvesse inventado - não era bom nessas coisas- acabaria por se contradizer, jogar merda no ventilador.

Às cinco passou o serviço, desacorrentou a magrela e tomou a vicinal que dava para a rodovia. Os pedais em descanso, aproveitava a banguela. Na curva, a pajero atravessada na pista, os faróis baixos. Contra luz os homens do prefeito, os paus-mandados, o esperavam.

Na velocidade que ia não tinha como retroceder. Não deu tempo de pensar muito: freou em cima quase dando um cavalo-de-pau..

"Epa!! Epa!! Calma aí, rapaz! Onde vai com essa pressa toda? ; interpelou-o, a voz fanhosa inconfundível, o gorducho a quem chamavam de O Assessor. Era o chefe dos outros dois.

Responder o que? Tenso, apoiado na perna esquerda, o pé direito tremendo no pedal e uma vontade repentina de urinar, Ele quis estar longe dali.

"Rapazes, esse camarada aqui não é do tipo que mija para trás", riu o gordo para os comparsas ao mesmo tempo que lhe dava um tapa pesado nas costas.

"Quem não deve, não teme. Não é mesmo, garoto?".

No cinto, fincado em meio à banha, os contornos do parabellum cano longo escuro. Para intimidar à guisa de proteger.

"E o patrão, tu sabes, não é homem de pendurar dívida"

Dívida? Que papo de aranha era aquele? Por que diabos não faziam logo o que tinham que fazer? Os outros cães, imóveis, pareciam apenas aguardar uma ordem do gordo.

O Assessor abriu a jaqueta e sacou de dentro um envelope cuja cor ele não pode bem decifrar e apontou-o contra seu peito.

"Aqui está a grana. Pode contar se quiser. Você fez por merecer."

Ele titubeou e o outro voltou a empurrar o envelope na sua direção.

"Toma logo, garoto. E cai fora antes que a gente se arrependa!"

Ele achou por bem obedecer: pôs o envelope por dentro da camisa, manobrou a bicicleta contornando a pajero e começou a pedalar, em principio com cautela e depois, quando se sentiu fora do que calculava como sendo o alcance de um tiro, feito um raio rumo à rodovia.

Não mais que um quilômetro à frente, o carro com os asseclas do prefeito o alcançou. Estiveram emparelhados, o carro e a bicicleta, por algumas centenas de metros e ele sentiu que, se quisesse, eles poderiam atropelá-lo ou alvejá-lo; mas se ousasse olhar de lado ou pudesse ver no escuro perceberia que eles apenas riam e se divertiam em aterroriza-lo, em acua-lo. Seguiram assim durante algum tempo até se cansarem da brincadeira, então aceleraram forte e desapareceram como vampiros noctívagos que temessem as primeiras luzes do dia.

O medo ainda mordia seus calcanhares quando ele entrou na cidade. O recado tinha sido dado e ele tinha compreendido que fizera bem em não comentar com o delegado e a imprensa sobre as outras vezes em que o prefeito, alegando problemas com o carro, mandara embora a acompanhante e chamara ao Luna Caliente o rapagão com porte de atleta que se fazia passar por mecânico. Pois, embora tivesse apenas uma idéia superficial da podridão que ditava as regras do jogo da política, ele não era bobo. Ficara subtendido que, para todos os efeitos, o senhor prefeito era macho e viril. Vivia uma crise conjugal, é verdade, mas por conta de um adultério comprovado com testemunha e tudo; não por motivos alegados pela esposa de que gostava de se divertir com garotos e que o casamento deles era só de fachada.