RECADO DO ALÉM
Bia Lelles
 
 

Acordou daquele semitranse com a batida da porta da sala. Talvez tivessem falado com ele, mas nada ouvira. Levantou-se e andou pela casa: muitos dos móveis ainda eram os mesmos do início do casamento, a pintura das paredes, os quadros, os utensílios da cozinha. Tudo era carregado de lembranças, o cheiro dela ainda pairava no ar. Tomou um calmante, seu corpo doía, pediu aos céus que lhe permitissem dormir um pouco.

Simão era um homem forte, policial militar desde sempre, autodidata, escritor e piadista. Os anos fizeram-no ranzinza, mas ainda dono de ótima conversa. Contava causos maravilhosos e adorava ver os netos reunidos à mesa da cozinha. Jacyra aprendera escrever o nome do dia do casamento, aliás, nem sobrenome tinha, vivera no mato, descalça, até os 19 anos, quando Simão a mandara buscar para o casamento. Soube de sua beleza selvagem por um irmão e, mesmo sem conhecê-la, decidiu que ela seria sua esposa. Tudo parecia ter acontecido ontem, entretanto 52 anos haviam se passado.

Quando acordou, ainda estava tonto devido ao efeito do remédio. Sentiu cheiro de café vindo da cozinha, barulho de passos pelo assoalho. Sorriu e levantou-se rapidamente. “Jacyra!”, gritou com entusiasmo. Atordoado, entrou de sopetão no cômodo frio e deu cara com o vazio que reinava no ambiente. Não conseguia entender... Onde estava sua mulher? Sentou-se no chão frio e chorou desconsolado.

Os dias foram passando e a apatia tomando conta de tudo. Não tinha vontade de comer, não mais se barbeava, mal tomava banho. As filhas passavam diariamente para vê-lo, mas não entendiam o porquê daquele abismo em que ele se jogara. Nunca dera muito valor à esposa, ralhava com ela o tempo inteiro e ainda tivera amantes por toda a vida. Mas ela permanecia ali, ao seu lado, sem nada exigir, quieta em seu mundinho simples. E Simão amava do seu jeito aquela figura bonita, cuja única vaidade era pintar de vermelho as unhas compridas.

Como ela poderia ter-lhe deixado assim sem permissão? Como pudera abandonar-lhe? Não, não... Ele não aceitaria incólume tal fato. Algo teria que ser feito. Decidiu encontrá-la, as lágrimas turvando-lhe a visão. No quarto, ao lado da cama, viu os chinelos da esposa. As roupas continuavam arrumadas no armário. “Ela vai voltar!”, pensou. Tentou se concentrar nas últimas conversas que tiveram, talvez pudesse tê-la magoado de alguma forma. Dizia baixinho seu nome andando pela casa. Procurou em todos os cantos, andou pelo quintal, lavanderia, entre as plantas no jardim. Tentou acalmar-se, imaginando que no dia seguinte ela voltaria ao lar.

Os dias foram passando e nada de Jacyra aparecer. Simão já não mais chamava seu nome em voz baixa, gritava pela casa em total desespero. Abatido, olhos cansados, voz rouca, não conseguia parar de chamá-la, precisava saber ao menos se estava bem, o que estaria fazendo longe dele, o que a teria levado a abandoná-lo...

Em meio ao desespero ouviu o barulho de palmas. Uma alegria encheu-lhe o coração de esperanças. Não atentou ao fato de que a mulher tinha as chaves de casa... Correu em direção à porta, um sorriso estampado nos lábios. Mas do lado de fora do portão quem lhe esperava era uma andarilha, carregando um enorme saco nas costas. Sua decepção foi imediata, antes que a mulher dissesse qualquer palavra, virou-lhe as costas de volta a casa. “O senhor já tem idade suficiente para entender o que aconteceu com sua esposa, não é?”, ouviu com espanto a frase proferida pela desconhecida. “Por que não lhe dá sossego e pára com essa ladainha chamando seu nome o dia inteiro? Ela precisa descansar e o senhor não lhe dá paz. A vida inteira ela lhe serviu, deixe-a descansar agora. Reze por ela se quiser ajudá-la. E arrume algo para ocupar o seu tempo!”, disse a mulher em tom agressivo. Simão levou alguns segundos para digerir o que acontecera e quando deu por si, já não havia mais ninguém em seu portão. Correu até a calçada, olhou pela rua, mas ninguém vira a tal senhora maltrapilha. O mundo rodava a sua volta. Como num filme, lembrou-se do hospital, a correria dos enfermeiros e médicos tentando reviver sua esposa. Depois o cheiro das flores, o choro dos filhos, a terra cobrindo o caixão...

Abriu os olhos com dificuldade, as paredes brancas não lhe eram conhecidas. “O senhor está bem, papai?”, perguntou-lhe a filha, sentada ao lado da cama. “Onde está sua mãe? O que estou fazendo aqui?”, disse já tentando arrancar o soro. “Calma, o senhor passou mal ontem, depois do enterro da mamãe, lembra-se?”. Sim, ele se lembrava agora. A doença, a morte de Jacyra, os amigos no funeral... As lembranças reais misturavam-se ao sonho que acabara de ter, sentia-se confuso e perturbado. Lágrimas molharam sua face. Nada mais poderia ser feito. Era hora de voltar para casa e enfrentar a realidade vazia.

Acordou daquele semitranse com a batida da porta da sala. Talvez tivessem falado com ele, mas nada ouvira. Levantou-se e andou pela casa dizendo baixinho uma oração pelo descanso eterno da esposa querida.