IMPRENSA VERSUS PRENSA
Doca Ramos Mello
 
 

Quando Lilico Ipojuca viu que na cidade faltava um jornal, decidiu que ia logo montar a Gazeta de Cruz das Almas, como forma de arrebanhar a bufunfa que seu compadre Astrogildo Souza, o prefeito, estava disposto a gastar para dar publicidade às obras de sua prefeitura. Sua, dele, Astrogildo, que dela havia feito um feudo para toda a família, os amigos, os inimigos perigosos e aqueles que, de um jeito ou de outro, detinham as verdadeiras histórias de sua ascensão política. Astrogildo era muito de ascensão, uma coisa como um raio, mal despontou e subiu.

Porquanto tudo andava nos conformes, ou seja, a Gazeta de Cruz das Almas ganhando rios de dinheiro com as publicações oficiais e as campanhas educativas da prefeitura (“mantenha seu cão sem carrapatos”, “diga não ao cigarro de palha”, “economize conversa mole”, etc), Lilico coçava os fundilhos com uma satisfação redobrada, embora no município todo mundo soubesse do superfaturamento de tais contratos – estava pouco se lixando, até porque Astrogildo era amasiado com Gonçala, a cunhada emergente de Lilico, Astrogildo era pois, parente e parente quente, não corria perigo algum.

Entretanto... Tem sempre um dia em que as coisas viram do avesso e quem vive da ignorância e da miséria popular sabe que não se pode confiar no zé-povinho porque essa gente é muito ordinária e costuma mudar de opinião, é uma praga... Pois um dia houve em que Manoel Inácio das Flores, fazendeiro rico, abastado senhor de terras e cabeças bovinas, mandou estudar na capital a filha Dulce Maria. E Dulce Maria estudou jornalismo. Ai, ai, ai...

Dulce Maria voltou à terra natal com desejo de montar um jornal na cidade, posto que via defeitos de todos os tipos na excelente publicação de Lilico, sem contar que essas moças modernas têm idéias de jerico e querem porque querem reformar o mundo, é um pesadelo isso. O pai abriu a carteira e mandou que a filha fizesse o que lhe desse na telha, até porque Dulce Maria era temporã e cheia de mimos, sempre fizera o que o que queria na vida...

Pois Dulce Maria montou a Folha de Cruz das Almas, cheia de idéias na cabeça. Bastou que começasse a circular seu semanário para atrair a atenção do prefeito, ainda mais que a mocinha deu para fazer umas manchetes meio problemáticas, sempre alfinetando o prefeito, a Câmara de vereadores (na verdade um bando de sujeitos analfabetos, ordinaríssimos, que se locupletavam nos cargos, vivendo à custa do erário sem prestar serviço de tipo nenhum que não fosse lamber as botas imundas de Astrogildo e gastar dinheiro com mulheres de vida airada), os contratos da prefeitura e, pior ainda, metendo a lenha na Gazeta.

Astrogildo agendou uma reunião para tomar as devidas providências, contando já com a mão pesada de Anacleto Tipóia, seu lugar-tenente para assuntos de mau comportamento na comunidade. Manoel Inácio ficou sabendo da coisa toda e apareceu assim, como quem não queria nada, na casa de Dagoberto Chuá, onde dona Henriqueta, a infeliz esposa de Chuá, servia suco de groselha para os convidados. Que emudeceram quando o fazendeiro chegou, abraçado com a filha. Dulce Maria, reluzente num vestido amarelo, foi logo perguntando se tinha lugar para eles dois. E se abancaram.

"Bom, seu Astrogildo, a Folha veio cobrir o evento”, disse Dulce Maria com sorriso nos lábios. “Já papai veio de enxerido mesmo, tem problema?”. Não tinha, claro. Mas, por via das dúvidas, o prefeito mandou buscar uns comes e bebes na padaria do Jovino e ainda comentou que era um prazer receber a Folha entre eles. “A notícia é sempre importante para a prefeitura”, asseverou maliciosamente...