DESPEDIDA
Kátia Rodrigues
 
 

Querido,

Quase onze horas do dias dos mortos, venho escrever-lhe. Alguma novidade, você talvez descubra. Não, nada que não se soubesse, e ainda assim inesperado. Mas da mesma forma como vim, não poderia deixar de dizer-lhe que parto. E a vida seguirá a mesma, sem que eu faça diferença e some. Contudo, vim agradecer-lhe. A coragem emprestada do medo de viver em seus olhos. O risco a ser corrido ganho pelo sentimento que por tanto tempo espreitei em meu peito.

Então depois de ouvir Enigma, o Rappa, depois de ver Jim Carey pateticamente ridículo num filme chamado O mentiroso, coisa que nunca fomos, depois de ver na internet que nosso presidente reeleito descansa numa praia da Bahia, e lambuzar os dedos com manteiga que passo no biscoito enquanto arremato a última taça, de um Lambrusco vagabundo, e ainda assim adorável; feliz por saber que depois dele tenho um branco gelado na geladeira, enquanto algumas alcachofras cozinham num fogo lento, e serão comidas sem culpa alguma, num molho de manteiga e alcaparras – sim sou burguesa e me presenteio sempre que posso, enquanto uso o tempo, um tempo de espera, esse que já me tomou inteira e me deixou na expectativa da sua chegada, de uma suposta volta, um retorno, venho lhe escrever, completamente renovada.

Sim, parto sem saudades, de uma cidade que me mostrou o quanto é estreita a mente humana, e imensa a capacidade de ser amarga e má; para onde vim vestida da vontade de sermos felizes, como se o sempre tivesse o formato dos nossos desejos Corri meus riscos, paguei o preço, a conta, mostrei a cara e fui gente grande. Cresci ao me enxergar sozinha, quando os dias passavam e eu não dizia palavras, por não ter ninguém por perto. Quando não tinha telefone, nem net, nem nada e, como náufraga via a chuva pesada por dentro da janela. Foram noites insones cheias de fantasias, onde você morava. Foram dias, semanas e meses, até descobri-lo morto não pra vida que queria, mas para as minhas vontades. Depois veio o luto, o vazio, a tristeza imensa e, o medo, quando se tem certeza que se perdeu o Tudo que se queria.

E o tempo? Descontrolado e libertador, cruel e zombeteiro, capaz de artimanhas e, astuto o suficiente para nos deixar sempre aos sobressaltos, encarregou-se de fazer as dores morrerem, para finalmente descobrir-me forte o suficiente, derrubando os muros, rompendo cordas e vendas, descobrindo-me desvencilhada sob os mantos que me envolviam, dizendo a que vim. Não encontrei amor aqui, então parto; parto ao ver a vida amorfa, ao ser chacoalhada por dentro pelo ritmo lento em que aqui se vive. Voltarei um dia, para buscar as coisas, objetos, caixas, roupas, casacos, livros, coisas que fazem parte de uma estória inventada, e saber que viver sem elas é possível é a maior das descobertas.

Vou deixá-lo sem um abraço afetuoso, mas não por falta de afeto. Levarei comigo aquilo que pensei que eras, as lembranças do que lhe causei na vida, vibrando pela profunda transformação e movimento, que acabou em nada, como se visse, depois de tudo que fomos um velho marujo, entorpecido, deitado sobre a areia, morrendo na praia. Vou para longe, onde tem o mar. Onde às águas salgadas e doces abundem, e a emoção flua. Verei novamente ondas quebrando, e em noites de lua cheia terei outro céu pra olhar. A lua daqui tornou-se pequena, ou seria eu, criança, que me transformei em alguém capaz de tocar as estrelas?

Permita-me dizer adeus, assim, por palavras, letras numa dança de palavras, sem tristes olhares de partida ou dos silêncios que cabem nas despedidas que nunca pretendemos ter. Talvez um último texto, um escrito perdido no fundo do email que um dia será lido, sem nenhuma pressa já que a vida escolhida não imprime a sua alma surpresas, nem vontades, nem tristezas... ela transcorre da maneira econômica tal qual sua própria vida, com pensamentos que antes de virarem sonhos, transmudam-se na certeza que todos os dias serão definitivamente e eternamente uma grande decepção.

Saio de cena com minhas certezas que a vida é mais do que se tem e vai além de nossos desejos e sonhos. Porque quero viver intensamente todos os meus sentidos, numa entrega insana, completamente escancarada, comprometida com o agora, onde o que importa é manter viva a coragem de mudar, depois de cada erro ou passo mal dado. As alcachofras me esperam lá dentro, e a vida pulsa lá fora.

Adeus!