DAS TERRAS DO ALÉM-MAR
Luísa Ataíde
 
 

Perfilando a linha do tempo num extenso colar de meses, lá atrás a centenas e centenas deles, seguindo a ponta magnética a noroeste da névoa do oceano, nas terras do além-mar ,o corvo negro da fatalidade certamente encontrará o dia.

Era uma manhã de domingo. A mulher colocou as botas molhadas na parte de baixo do forno, com os canos todos voltados para dentro. Enfiou o último par espremendo-o no pequeno espaço, levantou o corpo pesado e deu de cara com o livro estendido.

- O que é isso? Perguntou ao marido.

- É seu, está totalmente em branco, é para você escrever suas próprias estórias.

-A criada foi visitar a mãe, há muito arroz no pilão, e você me pede estórias? Você é o escritor da casa.

-Preciso de sua ajuda.

- Você nem sempre gosta dos meus palpites, diz que eu romanceio demais.

- Estórias sobrevivem aos séculos, disse o marido.

A mulher abriu o livro encadernado, dirigiu-se à sala de estudos e colocou- o sobre a mesa. Molhou a ponta da pena na tinta. Olhou demoradamente as folhas a sua frente. Olhou e viu. As imagens foram desenhando lentamente a linha do horizonte. As árvores e a estreita trilha flutuavam como reflexo em água... Viu uma casa pequena lá longe e pôde ver o portão à entrada dela.. Aproximou-se e viu que a casa era grande e tinha uma torre ao lado. Parou à frente do portão e quis puxar a alavanca da mureta de pedra. Deteve-se... Ouviu o ruído da água entre o portão e a casa. Percebeu risos. Olhou o céu claro e limpo sobre sua cabeça e ao longe uma pequena nuvem. A nuvem foi aos poucos se alongando e juntando-se a outras. O sol foi sumindo e a noite aproximando-se acelerada. Sentiu o manto agasalhador da noite, encolheu os ombros e ajeitou o xale sobre eles,.Pousou o pulso sobre o livro e iniciou o movimento:

Houve um tempo que reis, palácios, pontes e jardins compunham a paisagem daquele lugarejo, mas vieram as cruzadas e foram-se os reis e seus exércitos.

Das três torres apenas uma resistiu aos bombardeios. As flores sombreadas pelas árvores não mais cresceram e o antigo castelo na entrada da cidade passara a ser uma grande casa de pedra com paredes de musgo. Os poucos habitantes do lugar quando passavam perto faziam o sinal da cruz. O portão elevadiço não mais descera à ponte e só os corvos atreviam-se em vôos rasantes.

Numa noite de violentas chuvas em que raios riscavam o céu escuro, três carroças trazendo uma tribo de ciganos ali pararam em busca de abrigo. Não foram vistos na manhã seguinte e tão pouco nas outras. Desde então ouviam-se nas noites uivos e gargalhadas, mas os dias eram de perfeito silêncio.

Era uma menina linda de cabelos cinzentos e lábios levemente arroxeados. Nascera na casa e à ela pertencia. Quase não via a luz do sol e dormia entre teias e morcegos. Desobedecia ordens maternas e da fresta da torre olhava o vilarejo. Via plantas com cores esquisitas e pequenos morcegos de asas com coloridos mais estranhos ainda.

-Serão aranhas ? Mas pela pressa que voam como fazem suas teias ? E desde quando aranhas voam ? Por certo que são morcegos!

Sua tarefa diária consistia em cozinhar a sopa da família:

_Dedos de centopéia, miolo de javali, perna seca de perereca, sete gotas de sangue de filhote de gato, três de urina de sapo... Ah, nunca colocar sal. O sal contém o pecado da purificação e bruxas zelam por ser ...ME-DO-NHAS !

Magnólia cresceu entre os pátios escuros e estátua de seres tridátilos. Via da torre da casa os trigais tombados pelo vento e moças com tranças da mesma cor que eles. Riam sem motivo nenhum, só parando quando olhavam em direção à torre. Prsentiam serem observadas. Presságio não era então privilégio de bruxas. Magnólia achava as moças bonitas, por certo nem tanto quanto ela, pois os espelhos descascados da casa ora a mostrava muito gorda e baixa, ora de extrema magreza e queixo caído.

Mas , o desconhecido nos move o desejo. Resolveu na manhã seguinte, por certo que já era manhã, pois os morcegos se recolhiam, escorregar pela ponte elevadiça . Caiu estatelada nas águas escura do canal:

_Tudo por uma boa causa, afinal vou conhecer outras espécies de morcegos e ainda os corvos horrivelmente coloridos. É preciso ensinar a essa gente o que é realmente bonito.

Às vezes um passo em direção à curva e nunca mais se volta. A menina caminhou horas seguidas, empurrada ao abismo do desconhecido. Admirou-se com o vento e com aquelas folhas coloridas que terminava as plantas. Viu aquelas coisas nas árvores que alimentava os corvos. Observou que aqueles corvos tinham cores nas penas e até cantavam. Sentiu fome e puxou da árvore o fruto:

_ Até que não é tão ruim. Acho que vou acabar me acostumando.

Acostumou-se aos dias de sol e tardes de chuvas, com as estrelas e cantigas de roda. Fez amigos e tornou-se uma moça linda... De cabelos cinzentos e lábios arroxeados. Era uma moça... bem... só um pouco diferente. Conheceu um Oficial da Cavalaria que encantou -se com seu jeito melancólico e sua esquisitices. Casou-se e teve muitos filhos. Seus dias foram mágicos e escuros, e ainda hoje os estende como um grande lençol ao vento.

A cada sete invernos retornava à casa de pedras, para revigorar as energias. Contava aos filhos estórias de bruxas, fortalezas e caldeirões. Ensinou-lhes a manipular porções para as dores da alma e a conversar com plantas e gatos. Os netos de seus netos espalharam-se pelo mundo.

“ É gente de conteúdo intenso que transcende a compreensão, com os dois pés no chão da realidade. È gente humilde, simplória. È gente que tem idealismo na alma e no coração, que traz nos olhos a luz do amanhecer e a serenidade do acaso. Ri, chora, se emociona com uma simples carta, um telefonema, uma canção suave, um bom filme, um bom livro, um gesto de carinho, um abraço, um afago. É gente que ama e curte saudades, gosta de amigos, cultiva flores, ama os animais. Admira paisagens. Poeira traz lembranças de chão curtido de sonhos passados. Escuta o som dos ventos. Dança a dança do mundo pelo simples prazer de dançar. È gente que tem tempo pra sorrir bondade, semear perdão, repartir ternura, compartilhar vivências e dar espaço para ternura dentro de si. Emoções que fluem naturalmente dentro do seu ser! È gente que gosta de fazer as coisas que gosta, sem fugir de compromissos difíceis e inadiáveis, por mais desgastantes que sejam. Gente que semeia, colhe, orienta, se entende, aconselha, busca, busca a verdade e que sempre aprende, mesmo que seja de uma criança, de um pobre, de um analfabeto. È gente muito estranha as Bruxas. Gente de coração desarmado, sem ódios e preconceitos baratos. Gente que fala com plantas e bichos.Dança na chuva e alegra-se com o sol.Cultuam a lua como Deusa e lhe fazem celebrações... Eh! Gente estranha essas bruxas. Falam de amor com os olhos iluminados como um par de luas cheia. Gente que erra e reconhece, cai e se levanta com a mesma energia das grandes marés, que vão e voltam em harmoniosa cadência natural. Apanha e assimila os golpes, tirando lições dos erros, e fazendo redentores suas lágrimas e sofrimentos. Amam com missão sagrada e distribuem amor com a mesma serenidade que distribuem pão. Coragem é sinônimo de vida, seguem em busca de seus sonhos, independentes das arguras do caminho. Essa gente, vê o passado como referencial, o presente como luz e o futuro como meta. São estranhas as bruxas! Acreditam no poder feminino e estão sempre fazenda da maternidade sua maior magia e através da incessante busca pela paz chegam à divindade de existir pelo amor da grande Mãe, a natureza. Da mesma forma que produzem um grande visual, de elegância refinada com as raias da vaidade, se vestem como verdadeiras Bruxas medievais a caminho do patíbulo. Iluminam de beleza e jovialidade o corpo físico com habilidade mágica e com facilidade transforma-se, permitindo um sóbrio aspecto de velha senhora , a depender da lua nos seu espírito...Cultuam as sagradas tradições como forma de cultuar as leis que regem o universo, passam de geração a geração a fonte renovadora da sabedoria milenar. São fortes e valentes, ao mesmo tempo humildes e serenas. São leoas e gatinhas, são muito estranhas as bruxas Com a mesma facilidade que manuseiam livros codificados , o fazem com panelas e vassouras...São aventureiras, dançam rock,valsas e polka, danças sagradas e inventam o que precisa ser inventado.Criam e recriam. Contam contos e histórias de fadas e carochinha, contam suas próprias histórias...Falam de generosidade e de todas as deidades em exercícios constantes, buscam a plenitude como propósito...Interessante essa gente, essas Bruxas. Se obrigam a tarefa de evoluir, de amar e dividir...falam de desapego em plena metrópole, em meio às tecnologias. Cantam mantras e músicas populares, mas se emocionam com as folclóricas. Mexem com ervas e chás, são primitivas e avançadas. Pulam da mesa do rei para um abrigo montanhês com o mesmo sorriso enigmático de prazer e sabedoria que iluminava as faces de suas ancestrais. Degustam um pão artesanal, receita medieval da velha senhora das montanhas, com a mesma gula que o fazem com um banquete cinco estrelas com pães supersofisticados daquela cozinha francesa. Amam em esteiras e em grandes suítes, desde que estejam felizes, pois ser feliz é sempre a única condição dessa gente estranha. É gente que compra briga pela criança abandonada, pelo velho carente, pelo homem miserável, pela falta de respeito humano. È gente que fica horas olhando as estrelas, tentando decifrar seus mistérios e sempre conseguem. Gente que lê em fundos de xícaras, em bola de cristal, em tarot, com pedras, na areia, nas nuvens, no fogo, no copo d’agua...Oram pelos elementais, anjos e gnomos. Falam com intimidade com os Deuses e o chamam para um círculo, fazem fogueira e dançam em volta...Viajam de avião, à pé, de carro e em lombos de animais, agradecendo pelas oportunidades que a vida lhes dá... agradecem por tudo até pela dor, que chamam de mãe, pois acreditam que é a forma mais rápida para a evolução... Se reúnem em escolas iniciativas que chamam de coven, para mutuamente se bastarem,se protegerem,se resguardarem, resgatar valores, estudar. Muito estranha as bruxas, muito estranha a fé que as mantém vivificadas ao longo de cinco mil anos...”

Texto entre aspa- Gente estranha, de Graça Lúcia Azevedo