TRAPAÇA
Luís Augusto Marcelino
 
 

A notícia chegou assim, rasante. Silvia morrera naquela manhã, mas ainda não se sabia ao certo do quê. Flávio não comentou, não chorou, não se indignou, sequer olhou para Eduarda, que foi quem trouxe o aviso. Silvia morrera. A cara de Flávio foi de espanto e, como se tivesse sido atacado por uma horda de vampiros que lhe sugaram todo o sangue, empalideceu. Sentiu um ronco estranho no estômago, que ficou congelado. Os pêlos dos braços se eriçaram e as pernas começaram a tremer. Temeu que alguém percebesse, mas como não tinha articulação pra falar, simplesmente se levantou e foi ao banheiro. Jogou um pouco de água no rosto, segurou o choro e penteou os cabelos escuros com os próprios dedos. Olhou para o espelho. Ficou repetindo pra si mesmo: "não, ela não morreu". Ou teria mesmo morrido? Tudo muito confuso. A vista começou a embaralhar, ameaçou apagar de vez. Um colega do escritório entrou no banheiro. "Pra viver basta estar vivo, né?" Flávio pensou em mandá-lo ir se foder, mas soltou um sorriso amarelo e respondeu com um sucinto "é".

Mantinham um caso havia quase três anos. Ambos casados, ambos com filhos, ambos não planejaram nada - era isso o que diziam. Ela trabalhava no andar debaixo, no 18º andar. Discutiram uma vez por causa de uma nota fiscal. Odiaram-se. Encontraram-se num restaurante, perto do Natal. Silvia estava encantadora. E tomara duas taças de vinho. Sorriu pra ele. Ele se desmanchou. E foi-se passando o tempo, e ambos passaram a trocar e-mail vez ou outra. Depois, todos os dias. Daí, um passo pequeno para a paixão ardente, incontrolável.

Na véspera daquele dia maldito Flávio confessara para Ana Clara, sua mulher, que tinha uma amante. E mais do que isso: que queria a separação. Clara entrou em estado de choque. Não, não, ele não tinha o direito de fazer aquilo. E o apartamento? E os filhos? E tudo o que ela já tinha feito por ele? E a juventude que ela atirou na lata do lixo para casar aos 16 anos de idade? Não, não... aquilo não era certo. Quem era a vadia? – ela quis saber. Isso Flávio não revelou. Não importava, a questão não era essa. Tinha acabado o amor, compreende?

Quando ele saiu do banheiro foi que percebeu que podia ter acontecido uma tragédia. Silvia também ficara de contar para o marido a intenção de se separar. É, só podia ter sido mesmo um assassinato, ele bem que pressentiu algo ruim quando foi se deitar. Ele precisava apurar o quanto antes. Só não podia sair perguntando porque as pessoas iriam estranhar o súbito interesse pela morte de uma quase desconhecida. Além do mais, ele estava incapaz de pronunciar uma única frase sem vacilar, sem gaguejar, sem corroer a própria voz. Apanhou o paletó da cadeira e saiu apressadamente. Desceu um andar pelas escadas. Havia um burburinho. Dirigiu-se à máquina do café. Certamente lá ouviria um comentário qualquer. Uma mulher gorda, que estava com os braços cruzados e que lambia incessantemente os beiços avantajados, falava baixo, mas num tom suficiente para que Flávio pudesse ouvir.

- Dizem que ela tinha um amante... – revelou a gorda.

- É? – espantou-se sua interlocutora.

- Dizem que ele trabalha aqui.

- É? Nossa! E foi morrer assim?

- Pois é. É capaz de o marido chorar ao lado do caixão da putinha.

- É mesmo.

Flávio empalideceu de vez. As pernas bambearam e quase não tiveram força para carregá-lo dali. E os planos de ambos? Não, aquilo era uma trapaça do destino. Será que era outra Silvia? Não era. Não tinha outra Silvia na empresa. O celular de Flávio tocou. Ele olhou para o visor: Ana Clara. Quatro toques, ele pensou em não atender. Mudou de idéia.

- Alô?

- A gente precisa conversar... sei que está num momento difícil, Flávio. Mas acho que você tem que repensar.

- Já repensei, amor. Esquece tudo o que eu te disse ontem. Você é a mulher da minha vida.