COGNAQUE DE ALCATRÃO...
Claudio Fittipaldi
 
 

VASP – Viação Aérea São Paulo; Boa noite!

...Assim o jovem Reinaldo atendia ao telefone nos seus turnos de trabalho, cheio de animação e presteza. Não por obrigação, já que prá isso existiam as telefonistas, mas pelo prazer ímpar e pelo orgulho que nutria por aquela posição no trabalho, que chegava mesmo a transcender a apologista postura de sempre contentar o cliente, apregoada pela empresa aérea. Ele se atrevia a tentar dar um pouco mais do que o melhor de si, sempre, especialmente no atendimento telefônico, numa época em que esse não era um recurso banal, presente nas residenciais e em todas as lides do trabalho.

Naquele período o Brasil estava ainda no início do processo de desenvolvimento, e o transporte aéreo, como algumas outras atividades de importância, ainda era “tocado à lenha”. Diante desse quadro, não se poderia imaginar que um dia existiria o celular, corriqueiro, que até alguns bêbados, mendigos ou prostitutas, poderiam carregá-los nos próprios bolsos.

Ao modo de ver de Reinaldo, a abordagem telefônica conferia ao postulante ao atendimento o “status quo” de eminência comercial e como tal deveria ser tratado, a começar pela saudação padrão que aplicava incontinentimente.

Centralizador extremo, zeloso da própria imagem, guardião dos interesses da companhia, e até da aviação nacional, ele fazia daquele emprego, ao qual já tinha dedicado uns dez anos, quase a própria razão de viver, exigindo apenas a oportunidade e o direito alardear que “fazia tudo direitinho”. Obviamente o preço desse perfeccionismo era latente: Chegava mais cedo e saia mais tarde que todos, ritmo frenético de trabalho, e muitas refeições debruçado sobre os papéis, se tanto; na verdade, “ele jogava nas onze e chutava com os dois pés”,mas isso só não bastava, queria também “bater todos os escanteios e correr para cabecear”. Tudo por opção própria, e amor à camisa.

Reinaldo, perto dos trinta e cinco anos, era muito bem apessoado. Têmporas grisalhas, olhos penetrantemente azuis e rigorosos cuidados com o asseio pessoal e barbear, pareciam emoldurar o padrão de educação aplicado pela mãe, que com muita dedicação e esforço, conseguira formar um filho pleno, que depois profissionalizado, havia se transformado em funcionário padrão, do tipo que se dá bem nas grandes organizações.

Tinha também imperfeições; fumava desbragadamente, comia demais, e cá prá nós, tinha um gênio de fera, o qual se acostumara a engolir em processo de implosão em nome da coerência e da perfeição profissional. Até mesmo quando em desalento com o salário que julgava ser aquém do seu desempenho, conseguia manter a classe, mas a isso não vamos dar maior atenção.


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Embora seja intrinsecamente redundante, vale lembrar que não existiam comunicações por “e-mail”, e que as empresas muito bem equipadas tinham para fins similares os velhos aparelhos de “Telex”. Os relatórios gerenciais e as planilhas de contas eram via de regra, elaborados “à unha”, pois os computadores pareciam jóias trancadas a sete chaves. O sistema telefônico, então, era ridículo, com parcos recursos tecnológicos, por isso, algumas ligações davam em chiados, linhas cruzadas, eventuais interrupções e alguns outros problemas de comunicação.

Justifico o título deste relato lembrando a piada velha, bem daqueles tempos: Um dizia “Cognaque de Alcatrão”, e o outro, entendia “Catraca de Canhão”.

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Naquela noite o frio era de derrubar orelhas. Alguém muito provavelmente umedecido por aquela garoa fina, “Chuvinha de molhar bobo”, como se costumava dizer em São Paulo, liga de um orelhão instalado em algum bairro da periferia da cidade, e recebe como jamais poderia supor aquela saudação comercial “melhorada” pelo bom estado de espírito do atendente:

- Vasp – Viação Aérea São Paulo, Boa Noite! Reinaldo Bertin ao seu dispor...

- Alô?

- Vasp – Boa Noite; em que posso servi-lo, senhor? (já percebendo que a ligação não seria lá muito “católica”).

- Quem é “qui” fala? (Voz fina, sotaque nordestino carregado de uma boa dose de melancolia e outras tantas de cachaça mesmo).

- Reinaldo senhor, em que posso ajudar?

Já deviam ser umas nove e quinze da noite, o São Paulo jogava no Morumbi. Radinho de pilhas ligado, Reinaldo mantém um olho no peixe outro no gato... A conversa continua:

- Seu Ronaldo, euquerodespacharumcorpo para Maracanaú Ceará.

- Não é Ronaldo senhor. Reinaldo às suas ordens. Pode repetir, por favor?

- Aaa! seu Renaldo, euqueromandarumcorpo prá Maracanaú Ceará!

- Pois não senhor – por gentileza repita sua solicitação um pouco mais devagar...

Pelo radinho de pilhas se percebe que o São Paulo vai tomando um “revertério” qualquer do adversário, e ao fundo da transmissão do Fiori Gigliotti, pela rádio Panamericana, podia-se ouvir a torcida gritando: Por-co! Po-o-o-orco! E dá-lhe Porco!!!

- Pois é, seu Ronaldo (diz o matuto já um tanto irritado): Eu – quero – saber – quanto – custa – pá – mandá - um corpo - lá pá Maracanaú, lá no Ceará – Ce – a – rá!

A garoa se transmudara em chuva, interferência da intempérie na ligação, e no radinho, Fiori Gigliotti brandia: -“O teeeempo paaassa torcida brasileira”.

Reinaldo (Reinaldo, porra!), já começava bufar, nervoso com as duas situações. Porque não fora para casa no horário do final do expediente? Mas ainda mantendo a compostura profissional que lhe era pertinente, passou a dar instruções:

- Pois bem, senhor: O valor do transporte será calculado a partir do peso e das medidas do volume e isso somente poderemos informar aqui na base... Primeiro será preciso encaminhar o laudo de um veterinário, depois será preciso recolher as “sizas” referentes ao traslado; e também é obrigatória a utilização de uma caixa de madeira, devidamente preparada com um absorvente higiênico que suporte tanto a urina como as eventuais fezes do animal...

... Entendeu porco!

Compadecido pela perda, ainda atônito pela surpresa da orfandade e agora de “saco cheio”, o retirante pretendia única e tão somente remeter o corpo da própria mãe para sua cidade natal. Ledo e malfadado engano. Reinaldo não pode compreender as palavras, e com isso, gerou um mal entendido sem precedentes.

O matuto encerrou o telefonema com um último e desesperado desabafo:

- Ô sô Ronaldo... Renaldo... sei não que merda de nome de fila da puta é esse. Pode ir com o seu avião, seu telefone e essa sua chuva de paulista pá puta que pariu... Ouviu? Fio d´ua égua...

Desligou.

No radinho, Fiori dizia: “Fecham-se as cortinas” e ao fundo podia se ouvir a multidão gritando: Porco! Po o o or co! e dá-lhe Porco!

Naquela noite Reinaldo nem dormiu, no outro dia, riu.