RUA DO ROSÁRIO
Isaias Edson Sidney

Uma pane e um princípio de pânico. Num mundo atribulado por ameaças, qualquer fumaça pode ser prenúncio de dor. Mas era apenas uma pane comum, dessas que apressam intestinos mais nervosos. O vôo 601, Atenas – Londres, faria uma escala no Charles de Gaulle, para simples reparos. Depois do susto, o agradável encontro da babel de línguas num dos restaurantes do aeroporto. Todos se acomodaram. Sentei-me a uma pequena mesa, num canto, disposto a permanecer invisível ao bando álacre de judeus, americanos, ingleses, italianos, orientais, árabes e não sei mais quantas nacionalidades ali representadas. Nem o fato de estar em Paris despertava em mim algum tipo de humor ou de satisfação. Perda de tempo, aquela escala, que iria literalmente foder todo o meu planejamento de negócios em Londres e provocar a ira de meus chefes na longínqua Cingapura, de onde viera em vôos devidamente calculados para fazer escalas em determinadas cidades e chegar a Londres no dia exato da reunião com os banqueiros. Negócios, não é de negócios que pretendo falar, mas de uma estranha escala em Paris. Pois, ali estava eu, tentando reconhecer naquela xícara fumegante à minha frente algum distante sabor de café, quando ela surgiu de repente ao meu lado. Num inglês estranho, perguntou se podia assentar na única cadeira vazia de todo o restaurante, justamente a que estava diante de mim. Assenti por delicadeza e, querendo bancar o cavalheiro, levantei-me e acomodei a dama. Voltei à minha xícara, mas não pude deixar de observar a beleza simples daquela mulher que ali estava. Devia ter uns trinta e oito ou quarenta anos, se você olhasse bem, mas podia ter menos. Não reconheci a nacionalidade. Podia ser de qualquer país europeu, com sua tez branca, cabelos pretos acastanhados, maquiagem discreta, olhos... olhos... não podia identificar a cor daqueles olhos... seriam verdes ou azuis ou castanhos... pareciam mudar de tom... Por delicadeza, ainda intrigado, acendi-lhe o cigarro que se alongava da cigarrilha dourada. Disse merci, sem muita convicção. Perguntei-lhe se era francesa, numa mistura de espanhol, português e inglês, o que a fez sorrir. Disse que não e pediu-me desculpas por atrapalhar minha solidão. Foi a senha para o início de um longo papo numa longa noite que tinha tudo para terminar mal e que realmente terminou muito mal. Ainda hoje vasculho na Internet o nome de uma rua, o nome fatídico de uma rua, que existe em milhares de cidades espalhadas pelo mundo. Sei que é inútil a minha busca, sei que não adianta colecionar mapas e mapas de todas as cidades do mundo que têm uma rua do Rosário, ou uma ex-rua do Rosário, quase sempre um beco perdido entre igrejas e conventos, quase sempre a ligação entre duas praças ou entre a Catedral e a margem de um rio, ou ainda, apenas uma ruela perdida entre casarões barrocos ou medievais, principalmente na Europa tão plena de cidadezinhas antigas, com suas tradições e seu pequeno mundo de católicos e protestantes tão distantes das rotas imaginadas ou concretas do crime e dos golpes internacionais. Somente a minha obsessão permite que ainda almeje encontrar uma rua do Rosário onde possa ser encontrada... não sei se devo dizer amiga, amante ou algoz, aquela mulher de voz suave a sussurrar enredos de Hitchcock com palavras de Poe entre o burburinho de línguas estranhas num aeroporto de Paris, há tanto tempo... Tempo suficiente para que todo o horror que ela delineara tenha se realizado e eu nada pude fazer a respeito a não ser continuar obsessivamente a busca, como se isso pudesse mitigar um pouco o meu sofrimento ou o sofrimento de suas vítimas. Sua voz, ah! sua voz inebriante e aquele sotaque estranho de um inglês que nunca tinha ouvido antes, diferente, numa gramática e numa entonação que não eram americanas nem inglesas, mas que pareciam ter saído de livros antigos, como se eu estivesse diante de uma dama do século XIX, e isso provocava em mim mais do que estranheza, uma sensação agradável de cultura, de delicadeza antiga, de um mundo que não existia mais e que deixara saudades por seu glamour, sua noção de civilidade perdida. Como conversamos, naquela noite. Longa noite que começou no aeroporto Charles de Gaulle e continuou num hotelzinho simpático às margens da Rive Gauche, em plena Paris borbulhante do século vinte e um. É claro que o vôo para Londres ficara para depois, perdidos que estavam todos os horários e todos os compromissos. Foi uma longa noite de amor, vinho e cocaína. Uma noite, não, várias. Não posso dizer que não conheci o paraíso, não posso dizer que não coroava minha trajetória de bon-vivant com um romance que me remetia aos momentos mais ardentes dos mais audaciosos conquistadores amorosos da história, pois ali estava a mulher perfeita, a amante cheia de mistérios e truques que me deixaram literalmente à mercê de seus caprichos mais loucos. Por serem tão incríveis os seus dotes de fêmea, poupo o meu leitor de detalhes que não ouso revelar, para não manchar minha reputação com a pecha de mentiroso ou exagerado. Cerre-se, portanto, pudicamente, a cortina da luxúria, para deixar escoar aquilo que foi o motivo de todo o meu infortúnio posterior. Não sei exatamente por quantas horas ou quantos dias ali ficamos, trancados no quarto daquele hotelzinho da Rive Gauche, mas me lembro vagamente de, pelo menos, dois ou três sinais de alvorecer filtrados pelas cortinas cerradas. Bebemos, comemos e cheiramos durante todo esse tempo, alternando poucas horas de sono com longas horas de prazer e de conversa. E foi durante essas longas horas de conversa que ela me contou, aos pedaços, pouco a pouco, em frases precisas e cortantes que só agora, passado tanto tempo, ouso relembrar e consigo, finalmente, entender. Casei aos treze anos, dizia-me ela ao meu ouvido, em meio a uma nuvem de fumo e ao cheiro de álcool e sexo, e sua voz ressoava como numa caverna. Casei, não, fui vendida por meus pais, a um rico comerciante. Ambição. Essa a palavra que resumia a minha família. Ambição. Queriam ficar ricos, famosos, poderosos. Venderam-me. Não sei nem dizer por quanto. Um homem rico e nojento. Corpo cheio de cicatrizes, como se tivesse sido talhado a machado. Estuprou-me e engravidou-me. Abortei três meses depois e nunca mais pude ter filhos. Aos quinze, matei-o. E os empregados do luxuoso iate levaram a culpa. Voltei rica para a casa de meus pais. Mas a parte da fortuna de meu marido não era suficiente para a ambição deles. Venderam-me de novo. Um banqueiro de alguma parte do mundo. Velho, muito velho. Quando o afoguei na banheira, todos entenderam como um acidente previsível. Dessa vez, não voltei para a casa de meus pais. Mas a ambição já tomara conta de mim. Com dezessete anos, rica, bonita, pude leiloar os meus dotes entre vários pretendentes. Um industrial europeu levou-me para o oriente. Onde? Que industrial? Nada de nomes nem de lugares, meu caro. Nada de nomes nem de lugares. Tudo ainda é muito recente. Lembre-se, não tenho quarenta anos... E mergulhávamos de novo na bebida ou na cocaína e adormecíamos exaustos. Também o industrial? Sim, matei-o numa noite como esta, em que a orgia no palácio em que morávamos não tinha hora para terminar... Sufoquei-o com uma almofada de cetim bordada com florões de ouro. Overdose, a polícia concluiu. Tinha dezenove anos. Você é má, e eu ria, ria muito, como se ela tivesse me contado a piada do ano. Aos vinte, casei-me com um grande armador, dono de uma frota de navios mercantes que cruzavam o mundo levando mercadoria ilícita. Esse morreu com um tiro, numa estrada deserta. Você? E quem mais? E beijava-me, sorrindo. E sua boca me levava ao paraíso, em ritmo de blues. E suas pernas apertavam meu dorso, como serpentes azuis. E tudo era muito azul, ali, naquele hotelzinho de Paris. Fiquei com uma parte da fortuna do armador, só uma parte, mas já era bastante para viver o resto da minha vida... E então, não foi presa? Presa, eu? Uma cilada, meu caro, uma cilada de contrabandistas, concluiu a polícia, devidamente comprada com algumas migalhas de minha fortuna. E viajei pelo mundo. Navios em cruzeiros marítimos, orquestras tocando blues em seu corpo e eu viajava mais uma vez com as artes e artimanhas daquela mulher... Cansei das viagens e das aventuras inconseqüentes. Precisava de sangue, meu corpo desejava os braços de outro milionário que me pudesse, oh!, como é bom matar, você não pode imaginar, e minha boca se enchia de seu perfume e seus dedos tiravam arpejos de meus desejos e meus beijos flutuavam fluidos em flocos de fumo, em flocos de uma neve mais branca e mais pura, e eu gozava e antegozava cada assassinato que ele urdia e eu não sabia mais se sonhava um sonho ou se todo aquele pesadelo era apenas fruto do pó que fluía por minhas veias e expandia o meu cérebro em visões vermelhas de homens rotundos que rolavam ladeira abaixo, que se contorciam esfaqueados ou enregelavam em gases gélidos, todos eles gordos, ricos, feios, todos eles, muito feios, e ela ria, roçando os seios na minha cara, eriçando os pêlos de meu púbis, eu, um louco em louca cavalgada pelas ruas de Paris, a ouvir em solo de blues a sua voz e o seu sotaque do século dezenove e eu navegava por mares nunca antes imaginados, entre serpentes marinhas e deusas do olimpo, e estava feliz. Uma tarde, acordei, depois de muitas horas de sono pesado. Minha cabeça explodia em fagulhas, mas estava lúcido, lúcido e preso sob uma montanha de dor, dor nas costas, dor nos músculos, mil agulhas a me ferir, mas lúcido. Abri os olhos e vi apenas ruína. O leito revolto, o chão coberto de líquidos mal cheirosos e garrafas, tocos de cigarros, vestígios brancos sobre as almofadas, odores fortes de suor, esperma, urina, fumo e vômito. O estômago deu voltas e vomitei seguidamente umas duas horas, até que a dor passou e pude reconhecer no espelho o que de mim restara. Não havia muito que fazer. O bilhete ao lado do abajur era lacônico o suficiente para eu saber que terminava ali aquela aventura. Trazia apenas duas palavras, obrigada e um nome, que eu sabia ser falso, ou não, mas não importava. Na portaria, não tive problemas, tudo estava pago. Voltei ao Charles de Gaulle e tomei o primeiro avião para Londres. Não pensei no caso por alguns meses, como se meu organismo e minha mente precisassem de um tempo para processar tudo quanto meus ouvidos ouviram naqueles três ou quatro dias em Paris. Um dia, em meu escritório, caiu da agenda o bilhete. Como num filme, toda a cena, cada palavra, cada gesto, tudo me veio à lembrança e então percebi o horror de suas últimas palavras. Minha despedida de solteira, meu querido, é você. E então, meu oitavo marido me espera numa cidadezinha qualquer da Europa, dos Estados Unidos, talvez, do mundo enfim, onde viveremos e amaremos e viveremos muito ou pouco, até que a morte nos separe... Onde, onde? Sem nomes, meu caro, sem nomes... Um nome, um único nome, implorei antes de um último mergulho nos oceanos revoltos de sua carne, um nome... E então me lembrei, enquanto ela dizia que gozava, que gozava muito, como nunca gozara na vida, ela murmurava o nome de uma rua, uma rua cujo nome se repete em dezenas de cidadezinhas antigas, em todo o mundo, a nomear uma passagem entre a praça e o rio, entre a igreja e o convento, um beco, muitas vezes, com ares de rua, a rua do Rosário, onde aquela mulher dizia que ia morar com seu novo milionário, até que a morte os separasse... A rua do rosário de minhas buscas inúteis... a busca por uma mulher ou por um monstro que falava em solo de blues, num inglês do século dezenove...

 
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