PRESSENTIMENTO
Vera do Val
 
 

De alguma forma ela pressentia. Não saberia dizer quando isso começara e nem o porquê. Só pressentia. E isso a angustiava. Deixou o livro de lado, não conseguia concentrar-se. Levantou e caminhou para a janela. Afastou as cortinas e olhou a rua. O sol descambava, as cores rosadas tomavam conta do meio fio. Espreitou a esquina. Nada dele ainda. Seus dias agora se limitavam a isso. Esperar. Cada vez mais um pouco, cada vez mais tarde, cada vez mais complacente. Foi até o armário de bebidas e serviu-se de uma larga dose de uísque. O calor era insuportável. A roupa a incomodava. Despiu-se. Tirou uma camisola leve de seda azul das gavetas. Ele vai pensar que quero seduzi-lo. Não me importa. Que pense o que quiser. A seda desceu acariciante pelo corpo. Arrepiou. Bebeu um gole e olhou-se ao espelho. Era ainda bonita. Tocou os seios macios e claros que enrijeceram marcando o tecido. Riu suavemente. Lembrou-se dos dedos dele e as pernas bambearam. Alguma coisa estava acontecendo. Depois de tantos anos eu o conheço bem. Tantos anos... mais de vinte! O tempo voa. Que droga de clichê ridículo! Estava ficando obvia. Mas que voa , ah... voa! Vasculhou os cabelos em busca dos fios brancos. Estavam todos ali, sempre se recusara a disfarçá-los. Ele dizia que era seu charme e ela fingia que acreditava. Mais um gole e acreditaria em tudo. Não acreditara nele enquanto o tal de tempo obviamente voava? O copo esvaziou-se. Tornou a encher. Voltou à janela e vasculhou a rua. Nada ainda. Foi até o aparelho de som e colocou Billie Holiday. Ele gostava. De que mais ele gostava mesmo? Bebeu mais um pouco e começou a contar nos dedos. Gostava do bom uísque, isso ela nunca deixava faltar. De meias de seda, sempre as usara a pedido dele. Pinicavam suas pernas, mas ela usava. Gostava de charutos cubanos, ela sempre tinha uma caixa cheia dos melhores sobre a mesinha da sala de estar. Não podia se esquecer que ele gostava das suas pernas. Voltou ao espelho e levantou a saia. Elas estavam lá. Meio trêmulas mas estavam. Observou atenta as veiazinhas azuis que teimavam em aparecer. É. O tempo voa e vai escrevendo coisas no corpo da gente. Varizes! Essa agora. A camisola começava a grudar no corpo. Calor miserável. O que mais? Franziu a testa em um esforço para lembrar-se. Ele gostava do que ela fazia porque a vida dela tinha sido dedicada a fazer o que ele gostava. Riu. Voltou a encher o copo. Estava ficando bêbada. Isso importava? Afinal, e ela? Gostava de que? Não se lembrava mais. Nem sabia se gostava mesmo dele ainda. Ou se existia. Afastou os cabelos do rosto. Estava afogueada. Será que ela existia? Entre um soluço e outro começou a duvidar. Vinte anos! Quem era ela mesmo? Gostava de carne vermelha? Gostava de escargôs? Preferia margaridas a rosas? Não sabia mais. Mas Billie chorava alto e o uísque estava acabando.. Mais um pouco no copo e atirou a garrafa pela janela. Viu o explodir na rua deserta. Plof! Uma cabeça apareceu assustada no vitrô da casa em frente, ela recuou entre as cortinas. Dona Coisa Nenhuma, quem é você? Fazia tempo que não se perguntava nada, tinha perdido o hábito. As visitas dele estavam se espaçando mais. E mais. E mais. Andava ocupado, dizia, trabalho, essas coisas. Sentou-se na poltrona e olhou para os pés. Bonitos e cuidados. As unhas estavam pintadas de vermelho. Ela preferia um rosa claro, mas ele queria vermelho. Ele gostava e pronto. As unhas dela seriam vermelhas. Seriam? Rindo foi procurar acetona e algodão. Tirou o vermelho gritante e pegou o vidro de esmalte. Mal conseguiu lambuzar os dedos de cor de rosa. Mais um gole. Estava perfeito. Foi escarafunchar no guarda roupa e achou aquelas sandálias altas e azuis que, em um arroubo, comprara, e ele odiara. Vestiu-as e veio tiquetaqueando outra vez para o espelho. Lindas. Pegou o lápis e começou a desenhar os olhos. Não use pintura, ele dizia. O rímel agora. Droga. As lágrimas borravam tudo. Procurou na cozinha outra garrafa. Abriu e cortou o dedo. Ficou olhando embevecida o sangue escorrer. Era vermelho e ele gostava de vermelho. Bebeu no gargalo. Engasgou, e a bebida lhe escorreu entre os seios. Ele demorava mais que o habitual. Voltou à janela, tropeçando nas sandálias. E se tudo acabasse agora? Ele não despontava na esquina. Aliás, ele não despontava era mais na sua vida. E o que era sua vida senão aquela coisa sem vontade que ele fizera dela? Quem de verdade ela era? Que verdade era a sua? Preguiça. Era isso o que sentia. Uma enorme e inevitável preguiça.

Não. Não valia mais a pena.

Foi até o banheiro levando a garrafa consigo. Lavou o rosto. Esfregou até arder e a pintura sair toda deixando seu rosto queimando Guardou as sandálias azuis bem no fundo do armário. Outra vez a acetona e os dedos molhados de vermelho. Vermelho como o sangue que teimava em gotejar do dedo ferido. Qual era mesmo o vestido que ele mais gostava? Enfiou de qualquer jeito pela cabeça e seus dedos se atrapalharam com o zíper. Escovou os cabelos, ele sempre elogiava o anelado deles. Voltou ao espelho e sorriu. Lá estava ela. Ela? Lá estava a ela dele. Comme il faut... ele diria. Voltou para a poltrona, o livro estava ainda ali, abandonado. Uma caneta sobre a mesa e foi simples deixar o bilhete. Escreveu na primeira página. Olhou a garrafa com carinho. Bebeu mais um gole. Estava meio anestesiada, não seria muito difícil. O dia se fora e ele ainda não chegara. A sala esta quase às escuras, não fosse o luminoso do café defronte que piscava em vermelho forte. Ele gostava de vermelho. Estourou a garrafa na borda da mesinha, o uísque que sobrara encharcou suas pernas. Gostoso. Recostou-se mais na poltrona e fechou os olhos. Quando cortou os pulsos nem sentiu. Deixou-se levar pensando se ele gostaria disso.

Afinal ele gostava de vermelho.

Quando ele chegou, mais tarde, muito mais tarde só pôde ler o bilhete: querido, sua mentira está na poltrona da sala. Eu vou embora levando a minha verdade.

 
 
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