'LIBERDADE' EM JOGO
Cármen Rocha
 
 

Meu marido sugeriu o bairro da Liberdade. Entramos. Olhamos para todos os lados, escolhendo mesa. Resolvemos sentar-nos bem no meio para apreciar o que pudéssemos daquele ambiente estrangeiro. As mesas eram de madeira maciça cortadas horizontalmente, obedecendo ao contorno irregular de árvores imensas, e para valorizá-las não eram cobertas por toalhas.

O rapaz servia com roupas sui-generis: um tipo de gorro alto, de corte irregular, blusa com traços de letras orientais intraduzíveis, uns tamancos escuros e um avental com tiras largas, cruzadas nas costas. Vestimentas pretas com escritos vermelhos. Mas o que mais chamava a atenção era seu tipo físico, delicado sem ser pedante. Era cortês. Ele servia entre curvaturas e mesuras. Seu olhar brilhava. Ele nos introduziu naquele mundo oriental. O pedido era para duas pessoas.

Meu estimado marido- olhou desafiante para mim - pediu numa só tigela, mas o pedido era para dois, como logo se perceberia, principalmente quem estivesse esfomeado como eu própria. Esperávamos.

Meus olhos, disfarçando, percorriam a bizarra ornamentação. As mesas abriam em leque em torno de um balcão onde um senhor gordo, sentado, olhos riscados, com ares de dono em sua língua amada, dava ordens ou as boas vindas aos que entravam e saíam, muito bem servidos, o que demonstravam imensos sorrisos e fartos. Função conveniente e democrática de quase porteiro.

Ele parecia dentro de uma fortaleza, rodeado de bandeirinhas pretas, típicas, penduradas no alto em toda a extensão do balcão. Enquanto nisseis iam e vinham em passinhos miúdos, guardando tigelinhas várias ou levando e trazendo saquês, loucinhas, pratinhos, bebidinhas, e os impiedosos hashis - os pauzinhos de comer.

Logo o rapaz entregou a sopa de macarrão servida entre algas, milho verde e cebolinhas cortadas não muito fino. O caldo, pelo aroma, lembrava o conhecido knorr, também japonês.

Eu para acalmar a fome e contornar a situação, usei meu poder mental observando intensamente o ambiente, desviando assim, meus sentidos, da refeição apetitosa.
Concentrei-me em não pensar em situações desagradáveis, e a saborosa sopa que não desejei por convicção, para evitar o deliciado sorriso na face do robusto homem em minha frente, e naturalmente os seus planos: Que delícia! - balbuciou, esfregando as mãos, tentando chamar a minha atenção.

O rapaz que servia, ainda dentro de certa deferência japonesa, tentou colocar a terrina de sopa em minha frente, o que cavalheirescamente meu marido impediu, arrastando-a com certo espalhafato para a sua frente.

Passou barulhentamente suas mãos na delicada toalha quente, e, imitando o sutil hábito japonês sorveu lentamente a sopa fumegante, e com todos os barulhos considerados de aprovação ao alimento - o famoso scherp.

Abri imediatamente um livrinho ao lado - delicadeza da casa - e fingi maravilhada ler e compreender, mesmo sendo hieróglifos, da direita para a esquerda, a interessantíssima literatura oriental. Após algum tempo – e finalmente o tempo passou - olhei, para cima quase no teto, e pude ver delicados desenhos de camponeses nipônicos.

O chapéu de palha de abas largas, para o plantio, o abano cheio de fios pendurados, o chinelo de fio grosseiro entre os dedos, e mais adiante formando linda fantasia uma espécie de chocalho musical, entre bela capa artesanal. Encantei-me.

Enquanto isso o homem em minha frente usando os amados pauzinhos, pegava com desenvoltura os seus ingredientes engolindo-os, e virava finalmente o caldo sem esquecer o barulho característico. Conseguia assim vencer a sopa pedida para duas pessoas e, pensava ele, a minha honra Tomou o delicado chá digestivo, amargo, quente e quase saboroso para mim, e pediu a conta.

O gordo japonês que de dentro do balcão a tudo assistia, vencendo a aparente frieza da raça, olhou-me e fez um muxoxo oriental. Não resistindo, pisquei–lhe de volta, com meu olho direito, que tinha fama de ser o mais bem humorado, e incorrupto.

 
 
fale com a autora