SANTA BOCA, MARTINHA!
Lisandra Gomes Coelho
 
 
Ahhhh boca... amiga danada para todas as horas! Passe a vida inteira dizendo despretensiosamente aquilo que teu mais obscuro íntimo deseja que a tua amiga boca te trará.

Marta passou uma adolescência inteira de desesperança falando, de sua amiga para fora, coisas sem pensar, que ela tinha certeza que jamais viriam a ser reais um dia. Quando eu comprar um carro, vai ser um Gurgel. É pobrinho, mas é jeitoso. E deve ser fácil de estacionar. Não quero comprar um apartamento luxuoso, um pequeno flat tá de bom tamanho. Assim não perco muito tempo limpando e ainda tenho os serviços na mão. Quando fizer um cruzeiro, quero um pelas Ilhas Gregas. Vou ser bailarina de Flamenco quando crescer. Não sei o que vou fazer da vida ainda... mas sei falar uma língua estrangeira com fluência, com certeza vou ter alguma bela carreira promissora... em alguma multinacional... vou nadar na grana, viajar seis vezes por ano pro exterior... namorar, pode até ser que eu namore uns caras aí, pra matar o tempo, mas casar... nunca, casar eu só caso se for com um estrangeiro.

Nos esbarramos uns meses atrás. Ela cresceu, ficou até que bonitinha. Continua meio distante, o que faz com que muita gente a tome por antipática. Mas quem a conhece bem sabe que se trata do seu jeito de ser e que ela se joga inteira nos braços de quem ganha sua confiança.

Não está estacionando seu Gurgel em lugar nenhum. O cruzeiro que fez durou dois dias e só chegou até o sul do estado do Rio de Janeiro. Mora com os pais. O que teve mais próximo de "seu apartamento" pertence a um ex-namorado... mas não chegou a passar uma noite dentro. A bailarina de Flamenco fez uma aula, estourou o joelho para todo o sempre e até hoje não é capaz de caminhar mais de meia hora sem caretas no olhar.

Sua promissora carreira profissional a faz puxar os cabelos a cada vez que pára para pensar em como foi que acabou nisso. Professora? Uma moça tão sonhadora, com desejos tão grandiosos - ok, esqueçamos do Gurgel.

Na verdade, ela mesma diz não saber onde foi que as coisas deram
errado. Uma carreira que não a satisfazia. Certo status almejado nunca conquistado. Nem um Gurgelzinho para contar a história. Nem um kitchenette para chamar de seu...

Mas não quer sair para encontrar a turma amanhã. Diz que está de "rolo" - com seu já habitual sorriso encabulado -, com um cara. Um gringo. Holandês. "Adoraria ver vocês todos... mas sabe como é, ele também já está pra voltar pra casa e eu estou na correria com documentos, bagagem, proclamas, visto, esta coisa toda... eu não tenho tempo para vê-los não... mas prometo que mando postais pra todo mundo".

...Santa boca, Martinha!
 
 
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