ADÃO, TERESA, MARCELA E OUTROS ET'S
Maria Luísa Rocha
 
 

Conheço o Adão há mais de vinte anos. É um homem alto, negro, com um ar manso e perdido, conhecido por todos no bairro Carmo. Às vezes toma banho no posto de gasolina e durante a semana é alimentado por mãos piedosas de um restaurante self-service que fica pertinho de onde é sua casa: na calçada da movimentada avenida Nossa Senhora do Carmo, em frente a uma loja de cerâmica.

Sempre gostei do Adão. Era um homem belo e distinto. Minha imaginação fazia com que eu o considerasse um rei africano que, na vida anterior, fora escravizado e trazido ao Brasil. Seu andar fidalgo, seu porte esbelto, suas maneiras gentis eram próprias de um belo rei, condenado a um desterro eterno.

Quando trabalhava no Tribunal de Justiça, eu passava diariamente pela avenida e fazia questão de cumprimentá-lo: “Como vai, Adão? Tudo bom?” E ele respondia, respeitoso e sorridente: “Tudo bem, e a senhora?”.

Eu, cheia de culpas, sempre levava pra ele um lanchinho, uma roupa, que ele aceitava com gratidão. Engraçado ... acabei de me lembrar de um detalhe: naquela época eu era um pouco mais que uma adolescente meio rebelde. Passava em frente à igreja do Carmo, observava as pessoas rezando e, avessa aos rituais, dizia pra mim mesma:

-Eu não tenho a menor paciência com rezas e terços, mas meu encontro diário com o Adão e os agrados que lhe ofertava parecem com uma missa e uma comunhão.

Claro que o tom dos meus pensamentos era de desafio, mas hoje sei que eu estava certa. Ali ocorria uma santa missa sim. E louvado seja para sempre Nosso Senhor Jesus Cristo! Amém!

Bem, depois deste breve parênteses, volto ao que interessa, ou seja, ao rei Adão:

Ele fumava, mas não gostava de aceitar cigarro. Bem que eu tentei várias vezes e ele recusava sempre. Aos poucos, descobri o motivo: ele gostava de pegar as guimbas no chão e montar seus próprios cigarros, enrolando os fumos em qualquer pedaço de papel. Belo Adão!

Passei muitas noites preocupada com ele, pensando nas maldades que poderia sofrer durante o sono e resolvi tentar tirá-lo da rua. Consegui um lugar em um asilo mantido por pessoas espíritas que acolhiam moradores de rua. A única exigência seria apresentar um documento de identidade. Qualquer um. Um belo dia, abordei-o e fiz o convite. Ele ficou pensando, enigmático, e não me respondeu. Eu insisti e pedi pra ele me apresentar um documento. Falei até, explicando como ia ser boa e feliz a sua nova vida. E, então, com muita firmeza, ele me respondeu:

“Não tenho documento. Está tudo lá... do outro lado”.

“Mas onde, Adão, me fala que eu vou buscar”.

“Tá tudo com a minha madrinha, do outro lado”.

Cansada, perguntei: “Quem é sua madrinha?”

Adão olhou pro alto, apontou a mão para o céu ensolarado e, com devoção e profunda paz, respondeu:

“Minha madrinha é Nossa Senhora de Fátima”.

Muitos anos se passaram. Hoje, bem velho, Adão mora e dorme no mesmo lugar. Raramente passo por ele, mas não desisti de retirá-lo da rua.

Teresa já morreu. De tuberculose e frio, na rua Grão Mogol, em frente ao açougue do Geraldo. Era uma mulher muito feia, negra, magérrima, com um bigodinho em cima dos lábios que a fazia parecer uma bruxa. Carregava sempre uma boneca e cantava lindas canções de ninar. Às vezes, entrava na igreja do Carmo, domingo à noite, entoando as músicas sacras com voz firme e afinada. Frei Cláudio interrompia a missa, cumprimentava-a e ela ficava satisfeita. Gostava também de varrer a calçada onde morava. Varria o mesmo lugar sem parar, com zelo de uma dona de casa exemplar. Diziam que ela enlouquecera quando perdeu a filha em um incêndio no barraco que moravam. A boneca foi a solução que a sábia Teresa encontrou para continuar vivendo, embalando-a com todo seu carinho materno. Não deixou a fonte secar...

Marcela, pequena grande mulher, dona de nome tão belo – me faz lembrar a cheirosa flor macela – não tive a alegria de conhecê-la pessoalmente.

Fiquei sabendo de sua história exatamente no dia de sua morte, pela internet. Mas o relato de sua vida, traçado em poucas linhas por seu grande amigo Franklin, foi tão emocionante que me fez aproximar de sua alma como se já a conhecesse por longo tempo.

Doou toda a sua vida, seu tempo, seus recursos do trabalho de bibliotecária em uma escola municipal de Belo Horizonte, em prol de animais doentes, atropelados e abandonados pelas ruas. Alugou uma casa para onde levava os bichos resgatados e os recuperava, tratando de suas feridas e de sua confiança nos animais humanos. Todos os dias, após o trabalho, pegava quatro ônibus para ir alimentá-los, sempre sozinha e decidida.

Marcela é a Santa Clara dos dias de hoje. Nem uma doença terrível a impediu de lutar pelos seus animais. Entregou sua vida a eles. E, em seu leito de morte, chamou seu fiel amigo e pediu-lhe que não os abandonasse para poder partir em paz. Morreu feliz, sabendo que seu último desejo seria atendido.

Agora, Franklin, que também é meio et – aliás, acho que ele é o São Francisco dos dias de hoje – pega os quatro ônibus para ir até a casa dos animais para deles cuidar e honrar sua promessa. Quem se habilita a ajudá-lo ou quem quer adotar um dos bichinhos?

Vou parar por aqui. Deixo a minha conclusão que, neste planeta, há mais estranhos do que supõe a vã filosofia de algum sábio.

(*) Dedico esta crônica aos “estrangeiros “que têm passado pela minha vida e me ensinado muitas coisas. Dentre outros, meu pai, Franklin e frei Cláudio.