QUARENTA E DOIS ANOS DE SOLIDÃO
Ronaldo Torres
 

“O sul acaba no Paraguai”
Antonio Torres, in: Essa Terra

Não me lembro o mês nem o dia. Devia ser janeiro porque era mês de férias. Podia ser qualquer dia da semana, menos domingo ou segunda-feira: não havia missa nem feira. Domingo era dia de descanso e reza. Muita reza para Nossa Senhora do Amparo e todos os santos; segunda-feira era dia de ajustes de contas entre patrões e empregados, credores e devedores, donos de bodegas e bebedores do “pindura”. Só os feirantes partiam em seus paus-de-arara ruidosos em busca de novos mercados e retornavam na segunda-feira seguinte, abastecidos de novas mercadorias.

Acordamos na hora dos pássaros, mas nesse dia não houve reza da Ladainha de Nossa Senhora, conforme o costume da casa. Em vez de kyrie eleison, discussões, apelos e uma sentença definitiva de nossa mãe: “Não pari filhos para morrer na ignorância do cabo da enxada.” No calor da contenda, ficamos sabendo o que nos esconderam durante a agitação da semana: estávamos de partida para Alagoinhas, cidade a menos de cem quilômetros de Lagoa Azul, e que era uma ida sem volta, definitiva, e somente a passeio veríamos novamente a cidade fundada por nossos tataravôs.

Não me lembro se fiquei contente ou se chorei. Lembro-me que uma vez, em romaria para a cidade de Candeias, passamos por Alagoinhas e me assustei com o tamanho da cidade. Havia um movimento intenso de automóveis pelas ruas e o povo andava apressado, como se levasse fogo para alguém. Guedes, meu irmão mais novo, quando inquirido por mim, disse não se lembrar da cidade. Na época ele era muito pequeno, quase um bebê, e não devia se lembrar mesmo.

Em Lagoa Azul havia apenas três carros: o Jeep dos Mandioca, a Rural Willis da Prefeitura e o caminhão de seu Dema. Era, o caminhão, o transportador de ilusões, o realizador de sonhos, o objeto do desejo quando subia a Ladeira Grande rumo ao desconhecido.

O dia não amanhecera de todo e o caminhão roncou em nossa porta da casa da rua. A agitação aumentou com a chegada de nossos vizinhos, primos, amigos e tios; até nosso avô materno resolveu aparecer para a despedida. Rostos sonolentos e tristes perambulavam dentro de casa ajudando no bota-fora. Mudança de sertanejo não há muito que se carregar: uma rede, uma caneca de café e um papagaio. Algumas vezes, um cachorro de nome Baleia. Mas nós tínhamos algo além: três camas de mola com colchões de palha de junco, colchas de retalhos, um jogo de sofá, presente do genro Arnaldo, um amontoado de panelas de alumínio e cerâmica, e uma cristaleira, a menina dos olhos de nossa mãe. Era tudo que se tinha e parecia ser muita coisa, porém não encheu meio caminhão. Lagoa Azul, um ponto no mapa da miséria, não comportava certos luxos.

O crepúsculo matutino se dissipava no horizonte quando seu Dema buzinou em chamada de embarque. Tinha pressa em partir por causa do calor na estrada. Mais ainda pra se livrar do chororô dos que partiam e dos que ficavam. A nossa mãe, embora de coração partido, não arredou um milímetro em sua decisão: apenas beijou o nosso irmão Guidório, que ficaria com o nosso pai até o fim do ano letivo; concluiria o 5º ano primário e nas férias iria para Alagoinhas prestar os “Exames de Admissão ao Ginásio”.

Ainda me lembro da cara de choro de Guidório, antevendo uma saudade que nos uniria para sempre tal qual irmãos siameses. Até aquele momento o nosso choro havia sido apenas das surras da nossa mãe quando nos flagrava em traquinagem. As lágrimas daquele instante tinham uma dor mais profunda, aguda, dilacerante. Arranhava as entranhas e sufocava a alma. Foram as primeiras de tantas outras; era o mundo cobrando o seu preço por nos ter parido.

No pé da Ladeira Grande o caminhão acelerou para pegar embalo na subida. O motor roncou medonho, perturbando a sinfonia e harmonia da Natureza, fazendo voar assustados os bem-te-vis, canários-da-terra, pintassilgos e arapongas em confabulação na beira da estrada. Além da ladeira, uma revolução se fazia. Homens e ideais se digladiavam em embate de morte. Aquém, um homem lutava bravamente para não marejar os olhos. Em sua alma havia uma revolução maior do que todas as revoluções: a de ver seus sonhos, desejos e afetos se dissiparem na poeira da estrada. Depois que o caminhão fosse tragado pela linha do horizonte, nada mais seria como antes.

A pinga de outrora na bodega de Nelo para molhar a garganta antes de ganhar o caminho da roça com os alforjes cheios de mantimentos para a prole que o aguardava, agora servia para desmanchar o nó que lhe sufocava. O nó da amargura. O intricado nó da solidão. Mal desconfiava que um dia um filho seu escreveria contando aquela sua angústia e colocaria palavras não proferidas, não que não quisesse, mas por sentir vergonha da vontade de gritar ao mundo logo cedo da manhã: “Benditas são as mulheres. Elas sabem chorar”¹.

Ao subir a Ladeira Grande, pela primeira vez pude ver Lagoa Azul lá embaixo: minúscula, quieta, triste. Os primeiros raios de sol iluminaram a torre da igreja desafiando o espaço: imponente, impávida, querendo chegar até Deus. Uma rajada fria de vento sudeste bateu em nosso corpo em cima da carroceria do caminhão, deixando os pelos da pele eriçados. A torre da igreja sumiu entre os galhos de calumbi e olhamos para frente. O horizonte se descortinou em um azul infinito, assim como infinitas se fizeram a nossa saudade, as necessidades e humilhações no novo mundo, que nos recebeu com o mesmo sentimento de desconfiança devotado aos estrangeiros.

¹TORRES, Antonio. Essa Terra. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.67.