BÁRBARO FOGO E ABUTRES
João Gilberto Engelmann
 
 

Temos fogo. E olhe que não estou agora usando de nenhuma metáfora para designar os inúmeros calorões que sentimos por conta de nossos desejos sexuais. Temos fogo simplesmente. Fogo de verdade. Aquele mesmo que aquece, por mais redundante que possa parecer dizer isto. Mas é verdade que nós, enquanto impulso afetivo/sexual, dizemos sentir fogo, não pelo fato descuidoso de queimarmos nossa epiderme, mas sim por queimarmo-nos em nossas elucubrações imaginativas. Mas para não denotar um cunho puramente sexual a este símbolo da escrita prosaica, direciono-me, e me contento com isso, em falar pura e simplesmente do fogo objetivo. O que queima de verdade.

Alguém já imaginou o que seria de nós caso não tivéssemos o fogo? Meu Deus! Como viveríamos sem um chá quente no inverno; ou sem aquelas esplendorosas fogueiras em noite de São João; e o que acenderíamos aos santos nas devoções populares ou subjetivas? É o que me pergunto. Seríamos um caos. Não adiantaria mais esfregar os pauzinhos para esperar a faísca vindoura. Como ficaríamos sem a dança dos ditos pauzinhos a se esfregarem ferrenhamente até convergirem em uma galante chama nos interstícios dos mesmos? Tudo seria tão mais sem graça!

Sim, prometo que pensarei com mais carinho de hoje em diante em Prometeu. Afinal, foi ele quem heroicamente surrupiou o fogo dos deuses e o entregou aos Homens. Louvável coragem, por mais horripilante que tivera sido seu castigo. Ora, ter o fígado comido pelos abutres por toda a eternidade não é um dos castigos mais amenos que se possa receber. Não mesmo. Porém, foi ele quem percebeu a insustentabilidade dos Homens sem fogo. Nossos antepassados comiam o pão que o Diabo amassou. E o comiam sem assar. Ou talvez o assassem no sol. É, acho que sobre as pedras. Mas sofriam bastante, pois.

Falei em castigos horripilantes e lembrei-me de nossos “heróis” do crime. Em todas as esferas, mundial e Brasilsão. Que tal colocar um abutre comendo o fígado do Sr. George Walker Bush por toda a eternidade? Sim, sim, o W é de Walker. O caminhante que leva consigo o mundo todo. Até que não seria má idéia. Claro, poderia ser um desses urubuzinhos chinfrins que pairam nos desertos. Nem precisava ser daqueles abutres, que dá no mesmo com urubu, imponentes que se vê nas gravuras que ilustram o sofrimento de Prometeu. Já estaríamos satisfeitos. E que tal outros nos fígados dos senhores colarinho branco que tripudiam da justiça federal brasileira? Nova boa idéia. Precisamos pensar nisso. Sempre gostei de alimentar aves. Acho um ato de bondade para com os bípedes plumados famintos. E olha que outros tantos entrariam na lista dos castigados. Faltariam abutres até. Exagero ou não, eles não nos deram fogo. Deram inúmeras outras coisas – desfalques, roubos, mortes, etc.-, fogo não!

Castigos à parte, eu não viveria sem fogo. Não que eu goste de só sentir calorões – novamente não é metáfora. Mas seriamos mais frios sem fogo. Menos iluminados. E tudo isso denotativamente. Sem as subjetividades da conotação. Falo sério. “O fogo nosso de cada dia nos daí hoje”. Poderíamos rezar sem problema. Como ficaria Camões sem o fogo? Como fazer um comparativo em sua poesia? Não ficaria bom se dissesse: Amor é comichão na pele que arde sem se ver. Tem de ser fogo. “Amor é fogo que arde sem se ver”. Só assim teria graça continuar: “É dor que dói e não se sente, é um contentamento descontente” (...). Nem poesia haveria sem fogo. E isso tudo concluo. Temos fogo. Eu tenho fogo. Agora sim é metáfora!!