GARROTE VIL
Luís Valise
 
 

A vontade de fumar chegou de repente, como uma carta de adeus. O bar da esquina estava aberto, era só calçar os sapatos. Tinha parado de fumar anos atrás, quando um tio morreu de câncer no pulmão. Pra quê? De câncer, bala ou saudade, a morte é sempre igual, só que de saudade deve ser mais dolorido. Ligou pra ela:

- Você, de novo?

Ele, de novo, rastejou:

- Tô com saudade. Posso te ver?

- Não, não pode. Desista. Acabou.

- Pra você, talvez. Pra mim, não. Acabará nunca.

- Problema seu. Não me ligue mais.

- Vou voltar a ... click.

Um telefone desligado é inútil como um pedaço de osso. Ele ficou um tempão segurando o pedaço de osso junto à orelha. A saudade doía como câncer na lembrança.

Abriu o maço junto ao balcão. Pediu também caixa de fósforos e uma dose de vodka barata. A garganta travou, a vista escureceu, o mundo rodou por alguns instantes. Não sabia o que era pior, a saudade, a bebida ou o cigarro. Bebeu e fumou muito, até achou que ia morrer, mas o máximo que conseguiu foi uma ressaca bárbara.

A morte era uma saída, resolveu comprar um revólver. O dono da loja fez muitas perguntas, por certo desconfiado dos seus olhos tristes. Acabou comprando uma arma velha e descascada dum cara que tinha voltado com a mulher.

Encostado no balcão, pedia vodka vagabunda e acendia um cigarro. Não dava papo para outros desgraçados que chegavam com conversas bêbadas de amor ou ódio. Apenas bebia, e fumava, em silêncio, esperando a coragem que haveria de chegar. Nesse dia estaria pronto para o encontro com a morte, cara a cara. Sua mão roçava a coronha escondida sob a camisa. Saudade, bala ou câncer, o que chegasse primeiro.

Voltou a ser dominado pelo vício do cigarro. E mais: agora era também alcoólatra. Conseguia manter o emprego a duras penas, e seu dinheiro escapava entre os dedos trêmulos e amarelados de nicotina, pois além da vodka, dera para contar sua história a mulheres que lhe emprestavam corpos indiferentes, numa troca amargurada de fluídos e metástases. Voltava para casa de madrugada, cuidando de não esquecer o revólver velho e descascado na gaveta desses criados-mudos manchados de cigarros acesos e camisinhas viscosas. Até que numa bela manhã acordou pior que nunca. Simplesmente não conseguia levantar-se para o trabalho. A dor era insuportável, e ele compreendeu que o câncer ultrapassara a lembrança e agora atingia sua própria alma. Arrastou-se para fora da cama, sentiu nos pés o frio dos ladrilhos do banheiro. Ao ver os próprios pés com as unhas grossas e recurvadas, achou que deveria preparar-se, como se preparam os fanáticos quando vão ao encontro das virgens no Paraíso. Tomou um banho bem quente, cortou as unhas de abutre, raspou a barba até que a pele ficasse bem lisa sobre o rosto ossudo. As olheiras estavam realçadas, como duas poças de lágrimas escuras. Buscou a roupa menos amarrotada, fez questão de gravata, e por último o velho revólver descascado preso ao cinto. Abotoou o paletó, passou o pente nos cabelos, e saiu.

Ao entrar no escritório sentiu todos os olhares sobre si. Caminhou reto até a sala do chefe, entrou sem bater, e pediu demissão. Disse que ia viajar para fora, para sempre. Pegou um adiantamento por conta do acerto, saiu se despedindo de todos: - Prazer, boa sorte. Prazer, boa sorte. Prazer, boa sorte. Na rua caminhou resoluto até a estação do metrô. Saboreava os próprios passos, sentia deleite com o próprio peso, com a flexão das pernas. Deixou o troco para a bilheteira.

Deu esmola prum coitado que exibia feridas na perna. Era cedo, ela sairia para o almoço dentro de uma hora e meia. Lembrou que estava em jejum. Entrou num bar, pediu uma dose de vodka barata, acendeu um cigarro. Quem sabe a saudade ou o câncer chegassem assim, de súbito, evitando o calor da bala, o cheiro da pólvora, o baque no chão? Outra vodka, e outra. Ela apareceu na porta do prédio, caminhando entre amigas em direção ao restaurante. Ele a seguiu. Uma saia um tanto curta. Um salto um tanto alto. Aquelas pernas... A paixão apertou seu coração, e ele reprimiu na garganta um grito de porco esfaqueado. Esperou que elas entrassem, se sentassem à mesa, e então também entrou.

O batom vermelho, a sombra azulada, os cílios compridos, kabuki mais lindo. Parado à sua frente, viu os dentes brancos na boca aberta de espanto. Não disse nada. Soltou o botão do paletó, agarrou a coronha da arma velha e descascada e puxou-a para fora do cinto. Ergueu o braço, encostando o cano do revólver na própria têmpora. Esperou que ela gritasse – Pare!, mas ela nada fez, a não ser piscar repetidamente os olhos líquidos. Então ele sentiu muita raiva, esticou o braço e apontou a arma na direção do seu rosto. Esperou que ela dissesse – Não!, mas outra vez sua boca permaneceu muda. Quem gritava eram seus olhos, marrons e desesperados. Todo o restaurante estava congelado, à espera do disparo. Ele ainda perguntou, e essa foi a última vez:

- Volta pra mim?

A boca vermelha, os dentes brancos, a sombra azul, os cílios compridos, a cabeça balançando não. Guardou na cintura o revólver velho e descascado, deu meia-volta e saiu do restaurante. Parou um táxi e deu o endereço da casa das marafonas. A essa hora elas ainda não estavam com cheiro de azedo.