INACREDITÁVEL
Eduardo Prearo
 
 

De Lis me lembro como se fosse hoje, vestida de preto, abrindo a imensa janela do sotão, cujas paredes faziam um ângulo de setenta graus com o solo. O sotão era um lugar especial aonde fazíamos amor por horas a fio. Após abrir a janela, Lis veio correndo até a cama contar-me as boas-novas. Disse-me, acarinhando-me, depois de uma noite inteira de amor, que contratara uma babá brasileira para cuidar de Carol, mesmo o dinheiro do falecido estando no fim. Já passava das cinco, e abraçados, ficamos na cama a contemplar o Sol que nascia. No café da manhã, revelei-lhe meus planos.

- Quero advogar em outras terras, em New York mais precisamente. Vamos embora desta planície. Vendemos aqui, o que não será difícil e levamos a babá conosco.

- Veio uma vizinha ontem me dizer que sou uma viúva fogosa. Mandei-a para aquele lugar. Já faz um ano que Michel faleceu e não quero continuar me afogando em lágrimas. Estamos em 1933, meu amor, os tempos são outros. Já basta de preconceitos contra a mulher.

- Quinze dias será o tempo necessário para vendermos a casa. Bom, até a noite, querida, pois vou trabalhar.

- Não vá hoje. Fique para o almoço. Eu e Sondra matamos um boi. Ela vai fazer um prato típico boliviano, a feijoada. Eu sei que esse não é o serviço dela, mas...ela quis?!

- Esqueceu-se de que não como animais?

- Não sabe o que perde. Já sei, só come frutos e frutas. Então tá. Vá, amor.

Em New York, eu, Lis, Carol e a babá, alojamo-nos em um hotel até que bom, apesar do barulho do vizinho. Lis voltou a esculpir com argila para passar o tempo menos do que com o intuito de expor suas obras um dia, e eu iniciei meus serviços para uma grande empresa de artefatos. Tudo transcorria bem até que um dia o hotel foi assaltado enquanto eu trabalhava. Soube pelo rádio que Lis e Carol haviam sido assassinadas. Chorei muito, mas a vida continuava. A babá, Sondra, salvara-se. Ela voltou para o Brasil; na certa gostava dos índios.

Em 1941 fui convocado para a guerra, e os alemães só não me fuzilaram por que eu era o sózia de Hitler. E como um menecma, tornei-me em Berlim uma espécie de atração de circo. Comecei, então, a substituir Hitler em alguns eventos, e cultivei o famoso bigode quadrado.

- Sente-se

- Obrigado.

- Quando eu olho para o senhor sinto que estou olhando para um espelho.

- Preciso voltar para a América, seu Hitler. Sei que estou ainda vivo por causa de nossa acentuada semelhança. Mas não sou seu espelho. Jamais gostei de guerras, nem mesmo de guerra cotidianas que cada um trava com o mundo e consigo mesmo. Na verdade, fui um advogado fraco. Vai me mandar para um campo de concentração, rotular-me de alguma coisa?

- Coitado! O senhor será meu empregado doméstico. É bom ver-me fazendo os afazeres do lar.

Em 1942, fugi com todas as minhas forças. E após a bem-sucedida fuga, descolori os cabelos em um navio que se dirigia para o Rio de Janeiro. É claro, tirei aquele bigode esquisito; se bem que estava ficando calvo, e a calvíce torna a pessoa inexpressiva, quase que excluída. Sondra deixara-me seu endereço, e eu a encontrei belíssima. Fiquei morando com ela, que era solteira e tinha uma vida estável. Comecei a gostar de feijoada quando fui deportado. Voltei para New York carregando no colo um recém-nascido: meu filho com Sondra. O Teatro de Revista significava mais que o pequeno Tim para ela.

Tim era tão pequenino que ficava oculto sob meu paletó italiano nas minhas caminhadas matinais. Eu andava sempre apressado, com medo do amanhã, sempre resumindo a minha própria história, ou melhor, tornando-a cabível para quem a ouvisse. Entrei para uma academia e comecei a redigir crônicas. No entanto, os jornais consideraram-me supertímido para um cronista. Voltei a advogar e arrumei uma mulher para cuidar de Tim durante o dia.

Hoje estamos em 2007 e tenho quase cem anos. De 1930 à 1950, minha vida foi mais ou menos assim como lhes contei. Pensei que meu futuro seria brutal, mas não, até que não. Tomara que vocês, estudantes universitários, tirem algum proveito do que foi dito. Obrigado.

Aplausos.