BACO ERA UM SACO
Claudio Alecrim Costa

Sentia náuseas só em ver aquela barriga cheia de dobras, desabando, amparada pela mão providencial de Baco, sentado junto a sua garrafa de uísque paraguaio. Tinha um gosto especial por tudo que não valia um tostão sequer. Seus hábitos funestos ainda não haviam dado cabo de sua vida insciente. Vivia por insistência da divina providência, enquanto os mais cautelosos com a saúde partiam dessa para a melhor.

Levava a garrafa, enquanto conversávamos, até a boca e bebia no gargalo, deixando escorrer o destilado fétido pelo queixo até despencar na camisa encardida. A garrafa era sua mulher e amante. Era como se tivesse lábios a maldita garrafa em que ele grudava os seus num longo e imaginário beijo.

Era apaixonado por Hera, da praia de Ipanema, que usava uma saia curtíssima e chinelos estropiados. Tinha fama de invejosa, mas parecia gostar de Baco. Eu achava impossível que alguém pudesse se enroscar naquele sujeito adiposo e amá-lo.

- Tudo bem, Afonso?

- Tudo, Hera...

- E você bebê?

Chamar Baco de bebê soava irônico. Ele parecia todas as mães juntas parindo o bebê de Rosemary ao mesmo tempo, sorrindo e mostrando seus dentes amarelados e um canino de ouro que lhe caia tão mal como qualquer coisa que ornasse a sua figura bizarra.

- Viu aquela carola da Cíbele, bebê?

Essa era uma concorrente direta. Tinha modos de uma garota do interior, devotada a Deus e cheia de predicados. Poderia salvar Baco, se não fosse seu talento para escolher o pior.

- Eu só tenho olhos pra você, Hera... - Falou o canhestro Baco enquanto coçava as partes íntimas.

- Aquele babaca do Midas se acha o cara...Um esnobe!

Eu já estava cansado daquela mitologia toda de botequim e resolvi deixar o casal e correr para bem longe...

- Acho que já vou...

- Nada disso, Afonso... - Sentenciou Baco.

Era como se eu não tivesse direito ou vontade própria. Meus amigos decidiam por mim. Sempre foi assim com meus pais. Estava fadado ao desejo e imposição alheios.

Erguemos os copos e brindamos ao casal, abraçados, com Hera escorregando pela pança de Baco que virava o uísque e engolia enchendo a boca como um bárbaro.

Nesse momento, chegou Abeona...Era alta e de estrutura frágil. Seus modos eram contidos. Passava a sensação de quem não queria perturbar os outros com a sua presença. Sufocava em timidez.

- Esse é Afonso, Abeona!

Baco nos apresentou tão histericamente que Abeona corou e eu pensei em correr até ter certeza de que estava em segurança.

- Baco me fala muito sobre você...Diz que é escritor...

- Não é verdade...

- Como não, Afonso? Ele vai escrever minha biografia...

Rimos como tolos e continuamos nosso ritual, juntos, nos olhando estranhamente, enquanto Hera beijava Baco, e Abeona, ao meu lado, procurava algo em sua bolsa psicodélica.

- Vamos ao meu apartamento, Afonso?

- Abeona...

- Não diga que não...

Eu estava doido para fugir dali. Abeona prometia coisas melhores e, além do mais, ela havia me convidado. Estava à deriva como um barco de náufragos a espera de salvação. Quem sabe?

Seu apartamento era pequeno e arrumado com exatidão. Abeona poderia ser uma neurótica perigosa, pensei. Tudo era simétrico e parecia ter uma razão que a própria razão não entendia. Por isso, me joguei sobre o sofá e me abracei as muitas almofadas. Queria quebrar o rigor do ambiente...

- Você bebe?

- Uma cerveja...

- Deve estar pensando por que o convidei para o meu apartamento...

- Achei que poderia ser legal...

Quando Abeona sentou-se ao meu lado, afundamos no macio e traiçoeiro sofá. Rimos feito crianças e ela encostou os lábios nos meus. Veio-me a cabeça o maldito Baco enfiando o gargalo na boca como um bárbaro. Afastei sua boca da minha e beijei seus olhos...

- Eu não sou atraente, Afonso?

- Claro que sim...

- Me beija...

Além de me colocar no lugar da garrafa de Baco, Abeona me matava aos pouco com a sua comiseração. Toquei seus lábios e pude sentir seu hálito doce e um leve tremor no corpo. As imagens de Baco não desapareciam e se misturavam a fumaça do incenso que estava me sufocando...

- Me desculpe, Abeona...

- Eu fiz alguma coisa?

- Não, claro que não...O incenso...

- Você não gosta?

- Eu adoro...

- Outro aroma, quem sabe...

- Está perfeito... É que preciso sair...

- Que tola eu fui...

- Não foi não...

Antes que pudesse acabar a frase ela me beijou intensamente e a imagem de Baco e o incenso desapareceram. Rolamos pelo assoalho cheio de pétalas de rosas...

Abeona dormia profundamente e eu estava dentro de um roupão ridículo com bordados incompreensíveis. Vesti-me rapidamente e escrevi um bilhete breve...

Abeona,

Escolhi um incenso para cobrir seu espírito que não podia imaginar por onde andava enquanto dormia...

Foi a última vez que vi Abeona. Tentei evitar Baco várias vezes, mas implorava para que o encontrasse no bar, onde chorava suas mágoas e se queixava de Hera. Eu estava definitivamente perdido nessa história...

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