O MALABARISTA ATORMENTADO (PREÂMBULO FINAL)
Edison Veiga Junior
 
 

Dezoito horas depois, um café atrás de outro, o piscar de olhos nem funciona mais. Mãos ao alto, diz seu subconsciente, nervoso, como que preenchendo mais uma lacuna mental. No bolso, as três prestações vencidas rimam com o pedido de aumento feito anteontem, e recusado, claro, porque o exército de reserva é maior do que qualquer sonho proletário. Círculos concêntricos no chão por onde pisa, desviando com o sorriso dos buracos constantes, buracos perdidos, buracos traidores. Cuidado para não cair neles, quebrar o pescoço, morrer no hospital dois meses depois, viver em coma nesses dois meses, família chorando pelo corpo vegetativo até o médico desligar os aparelhos, zuiiiiim. O velório é aquela coisa burocrática, primeiro tem o preço do caixão, exploração pecuniária avançada post mortem, tem também toda a papelada, certidões, obituário, testamento, anúncio pequenininho no jornal, depois vem a choradeira, tias velhas que nunca mais se viam, ironias briguentas e birrentas ao pé do morto, por último vem o enterro, aqueles suspiros finais da viúva, o luto guardado por sete dias, a missa derradeira e a alma na paz de nosso senhor.

João Euclides da Silva não tropeçou no buraco, não morreu, não teve enterro digno. Continua trabalhando como malabarista do mequetrefe circo que insiste em se apresentar pelo interior do país. Mas uma garrafa de vidro escorrega em seu número, atinge seus lábios, corta-lhe todo, deixa-lhe em coma profundo por três meses e meio, a família desesperada decide e o médico, zuiiiiim, desliga todos os aparelhos. Aí é aquela burocracia, velório, certidão de óbito, testamento, anúncio fúnebre no jornal, cheiro de morbidez, tias velhas chorando e assoando o nariz com muito barulho, ironias briguentas e birrentas ao pé do morto. No enterro, suspiros finais da viúva, que deve guardar o luto por sete dias, até a missa derradeira. Depois continuará traindo o marido, agora defunto, agora sem o mesmo sentimento de culpa que, uma vez por ano, povoava sua cabeça.