VOU LEVANDO
Raymundo Silveira
 
 

Todas as tardes saía a passear cachorro no Cocó. Uns restos de crepúsculo alumiavam o caminho e a escuridão da velhice. Como vai seu Zilardo? Vou levando. Tornava intransitivo um verbo transitivo porque nem ele sabia como ia transitando. Sequer se ainda transitava. Se respondesse que ia levando o cachorro, dava pra entender menos ou mais. Mas, levando... só, sem mais nem menos? No entanto era isso: ia levando.

Levar, no caso dele, significava tudo. E não dizia nada. Levar, podia ser a nostalgia da mocidade distante ou a vã idade de uma vaidade que já não era. Levar, era a resignação pelo final da leitura de um livro sem miolo intitulado vida. Levar, enfim, era ser considerado um homem experiente. E experiência é o outro nome que as pessoas dão aos erros do passado.

Não éramos, exatamente, amigos. Porém, sentíamos mútua simpatia. Morávamos próximos um do outro. Jamais deixei de cumprimentá-lo: Como vai, seu Zilardo? Vou levando! Possuía quase nada além do cão: uma pequena aposentadoria, um tugúrio, uns tostões na poupança. Preocupava-se em não deixar a mulher e a filha única passar vexames quando tivesse que ir “estudar a geologia do campo santo”. E faltasse o dinheiro da passagem. Tinha, também, um misto de pomar e jardim que plantara e cuidava pessoalmente. Adorava as plantas. E elas correspondiam, sorrindo.

Às vezes, conversávamos. Apesar de pouco letrado, tinha convicções metafísicas singulares. As pessoas nunca encontrarão um modelo filosófico universal, dizia. Cada homem é o seu próprio filósofo. A natureza humana é paradoxal. Assim como há laivos de hipocrisia nas pessoas sinceras, também há bondade naquelas consideradas más e rasgos de grandeza entre as pobres de espírito. O bem e o mal absolutos são, portanto, imposturas maniqueístas em grande parte criadas e cultivadas pelas religiões.

Certo dia, enquanto caminhávamos e trocávamos algumas dessas idéias, contei-lhe certos fatos extraordinários que estavam acontecendo comigo. Acrescentei que ainda não experimentara nada parecido. Nem em romances tinha lido algo semelhante. Respondeu-me que, como escritor, muitas vezes eu teria de suprimir das minhas obras a realidade para a ficção se tornar verossímil.

Outra das suas lucubrações: É curiosa e patética, a maneira como os indivíduos acumulam e perdem prestígio e poder perante os demais. Trata-se de algo instintivo. Quando alguém se torna potencialmente capaz de ser útil, todos propendem a cercá-lo de homenagens e louvores. Quando aqueles atributos se tornam evanescentes, sucede o inverso. Trata-se, aparentemente, de um fenômeno óbvio e banal. Contudo, se torna cômico quando observado à distância. E citava exemplos concretos tirados da própria família.

Perguntei, certa vez, se nunca havia pensado em escrever. Respondeu: Não. Tudo o que tinha para escrever já estava escrito nele próprio. Bastava copiar. Não o fazia por considerar pura perda de tempo. Poucos o leriam. Não seria um autor conhecido. As editoras não o publicariam. E jamais pagaria para se auto-editar. E completava: Como as minhas obras não iam valer dinheiro algum, não seria eu a gastar dinheiro com elas. Então, me sentiria comprando uma mercadoria de mim mesmo. Pior, me sentiria pagando para consumirem o meu produto. E isto não faz sentido sob qualquer modelo econômico. Nem num regime marxista radical.

Por outro lado, não censurava quem escrevia. Pelo contrário, dizia. Escrever é uma conversa conosco mesmos que posteriormente repassamos ao leitor. Se este gostar, nos sentiremos poderosos, prestigiados e cheios de posse. Não se trata do poder, do prestígio e da posse convencionais. Sentimos que o nosso trabalho foi útil. Que aquilo tão penosamente espremido da nossa cabeça não foi em vão porque tornou alguém feliz ou, no mínimo, interessado no que tínhamos a dizer.

Então, o poder, o prestígio e a posse que o escritor adquire é quanto a si mesmo. Ele pode sobre si mesmo, tem prestigio perante si mesmo e, finalmente, possui a si mesmo. Era também de opinião que nenhum artista deveria esperar recompensa nos bens materiais possivelmente advindos de suas obras. Mas no prazer de executá-las e na sensação de liberdade que isto oferece.

Certo dia teve um derrame. Pretendia visitá-lo depois da praia. Era uma manhã de Domingo como poucas. Um sol de Almirante brilhava num céu de Brigadeiro. A cor do mar, ao longe, era de um azul marinho tão marinho que só em fitar a paisagem sentia-se como se a Terra inteira fosse um único oceano. Isto bastava para motivar, em quem o contemplasse, um bem-estar incomum. Uma espontânea alegria de viver. Encontrei lá a filha. Estava com o namorado. Ambos de pilequinho. Cumprimentou-me com a euforia típica dos embriagados. Eu estava com muita vontade de saber notícias do pai. Inteirar-me se receberia visitas.

- Por favor, falei depois de retribuir, com um pouco mais de sobriedade, o cumprimento. Também eu estava quase de pilequinho. Mas sobravam uns fiapos de solidariedade para com o pobre filósofo.

- Por favor, como vai o seu Zilardo?

- Bateu as botas às duas da manhã. A essa hora... Sei não. Acho que vão levando.